Literatura de Cortázar inspira jogos teatrais
‘A[r]mar’ parte de conto do escritor argentino; adaptação de Strindberg dá voz a personagem calada de ‘A Mais Forte’
Quanto tempo a gente vai repetir esse jogo?, questiona-se a personagem. Na realidade, os 70 minutos que duram “A[r]mar”, espetáculo que estreia em São Paulo, mas o jogo em questão tem diversos caminhos e leituras.
É um reflexo da literatura de Julio Cortázar e de “Manuscrito Achado Num Bolso”, conto do argentino em que a peça se inspira. Coloca em cena um homem e uma mulher (Bruno Perillo e Rita Pisano) sem nomes definidos.
Ele cria para si um jogo nas estações de metrô. Quando avista uma mulher de quem gosta, estabelece regras para um encontro entre os dois: ela precisa descer em tal parada, seguir certo caminho e, só então, ele irá se aproximar dela e iniciar uma conversa.
O conto de Cortázar não tem tantos traços da literatura fantástica que marcaram a obra do autor, mas a adaptação reforça essa linguagem, explica o diretor Paulo Azevedo, que também assina a dramaturgia.
Criam-se, assim, lacunas no texto, que dão margem a diferentes planos e interpretações. Não há uma narrativa cronológica —são feitos saltos e voltas no tempo— e, aqui e ali, borra-se o limite entre realidade, memória e ilusão. Tudo na história é cíclico, como se o jogo entre ele e ela se repetisse diversas vezes.
“Tomamos a liberdade [textual] de Cortázar, como em ‘O Jogo da Amarelinha’ [livro que pode ser lido em ordens diversas]”, diz Azevedo. “A ideia é que o espectador também jogue, monte sua percepção.”
O público pode entrar no jogo. Logo de início, parte da plateia é convidada a se sentar no palco, em cadeiras dispostas como assentos do metrô.
Não há participação e é possível sair de cena a qualquer momento, mas a ideia é que os espectadores tenham perspectivas diferentes das cenas e mergulhem no ambiente de observação em que por vezes se veem os viajantes de metrô.
O jogo também é o mote de “Senhora X, Senhorita Y”, adaptação da diretora e dramaturga Silvana Garcia para o espetáculo “A Mais Forte”, de August Strindberg.
Originalmente um monólogo, no qual uma mulher fala sobre o encontro dela com a amante do marido, o texto dá voz à segunda personagem.
Mais do que isso, as atrizes a todo momento trocam de personagem, fazendo ora a amante, ora a esposa traída, num jogo de improvisos —a música também é criada ao vivo, acompanhando as mudanças de cena. No seu debate, as mulheres passam por questões femininas, da maternidade aos padrões de beleza.
“A questão toda para nós é a relação entre mulheres, de que maneira podemos nos fortalecer nesse padrão social do feminino, do subalterno, do domesticado”, diz Garcia.
A[r]mar
Teatro Sérgio Cardoso, r. Rui Barbosa, 153. Sex., sáb. e seg., às 19h30, dom., às 20h. Até 1º/10. Ingr.: R$ 30 (antecipado) e R$ 40. 14 anos
Senhora X, Senhorita Y
Oficina Cultural Oswald de Andrade, r. Três Rios, 363. Qui. e sex., às 20h, sáb., às 18h. Até 29/9. Grátis. 14 anos
Bruno Machado
Não há muito espaço para o amor em “Cobra na Geladeira”. Na peça do canadense Brad Fraser, o sexo ocupa o eixo temático, engendra conflitos e se transmuta, ora em trauma, ora em mercadoria.
Na trama, dirigida por Marco Antônio Pâmio, um velho casarão é reduto de um grupo de desajustados e fracassados. Ávidos por dinheiro fácil, os jovens moradores são presas da ambiciosa Vivian (Regina Maria Remencius), espécie de cafetina que os alicia para shows de sexo via internet.
Surgem temas como abuso sexual infantil, homofobia e dependência química, ora sem atenuantes, ora por meio de subterfúgios, como elementos de suspense.
Um exemplo é Sarah (Tailine Ribeiro), para quem a memória dos estupros sistemáticos da infância é mais aterradora que a visão de um fantasma —aparentemente, a mansão é assombrada—, uma válvula de escape da realidade.
Característica no texto, a inversão brusca de polos, do ameno ao sombrio, do cômico ao trágico, é um desafio para o elenco e a direção. Os complexos personagens revelam diversas facetas que nem todos os intérpretes conseguem explorar satisfatoriamente.
O diretor, por sua vez, se sai melhor ao sublinhar a rispidez da dramaturgia. As cenas são estruturadas em cortes secos, quase cinematográficos, com ação simultânea em diversos planos. Criativo, Pâmio propõe soluções interessantes e mesmo capazes de acrescentar novas leituras para o texto.
A montagem opta por não atualizar a história, escrita em 2000. Além da estranheza cômica causada pelo anacronismo, a escolha se revela sagaz ao apontar que discussões atuais já eram pauta no fim dos anos 1990, como conflitos identitários e raciais e padrões de beleza irreais.
Ainda que vivam a pós-revolução sexual da segunda metade do século 20, os personagens jazem entre as ruínas de um casarão vitoriano.
São vítimas de uma ética perversa do século 19, mas ainda persistente, que simultaneamente os reprime e os vende como mercadorias num cardápio de fetiches. É essa esquizofrenia a responsável por conflitos, internos e sociais.
A imagem da cobra na geladeira sintetiza a crítica do dramaturgo: indomesticável, o desejo aprisionado frequentemente escapa por entre as fissuras das paredes de um edifício moderno e tecnológico, retrógrado e arruinado.
A Milionária
Teatro Cacilda Becker, r. Tito, 295: de 3 a 26/8. Teatro João Caetano, r. Borges Lagoa, 650: de 31/8 a 23/9. Sex. e sáb., às 21h, dom., às 19h. Grátis. 14 anos
Amilton de Azevedo
A atualidade de temáticas presentes em grandes obras parece verificar sua universalidade. No entanto, há certas implicações nestas escolhas. Parece fundamental compreender o contexto e confrontar as questões abordadas com o contemporâneo. Não apenas na linguagem cênica, mas também na abordagem formal do conteúdo apresentado.
Com a intenção de popularizar a obra de Bernard Shaw, o Círculo de Atores leva à cena “A Milionária”. Escrito em 1936, o texto aponta, de modo pouco sutil, para a problemática da concentração de renda.
Epifânia (Chris Couto) é uma herdeira aparentemente mimada, que se revela ardilosa e sem escrúpulos. A obra constrói seu discurso a partir de situações familiares e amorosas que se desenvolvem entre a protagonista, pretendentes, o marido e a amante dele —além do advogado Sagamore (Sergio Mastropasqua).
De modo geral, a encenação de Thiago Ledier se atém à crítica de Shaw ao comportamento das classes mais favorecidas. Fortunas herdadas, fraudes, exploração de mão de obra: não há inocentes; e isso se revela sem pudores na fala das personagens.
Neste sentido, surge a necessidade de encarar questões do texto à luz do pensamento atual. Muitos diálogos parecem tratar de temas caros aos dias de hoje de maneira inconsequente. É o caso do humor que contamina parte do público em comentários sobre violência doméstica.
Ademais, “A Milionária” realiza escolhas anacrônicas. As interpretações estão consistentes, mas há pouca interioridade aos personagens, construídos superficialmente.
A tradução, de Eduardo Tolentino e Ledier, confere dinâmica aos diálogos. Com cenário simples e versátil e uma luz que também não parece ousar, o espetáculo tem o texto como o centro da encenação.
Enquanto arte presencial, o teatro de hoje não pode ser visto apenas como documento histórico, mas como discurso cênico sobre a atualidade.
Eles Não Usam Black-Tie
Teatro Aliança Francesa, r. Gen. Jardim, 182. Sex. e sáb., às 20h30, dom., às 19h. Até 16/9. Ingr.: R$ 60. 12 anos
Paulo Bio Toledo
“Eles Não Usam Black-Tie” é talvez a peça de teatro mais importante da história recente do Brasil. Quando estreou em 1958, no Teatro de Arena de São Paulo, deflagrou o maior ciclo de engajamento político nos rumos do teatro nacional.
Mas, apesar da importância, ela contém uma contradição estrutural. Os assuntos decisivos ali, como a luta social, a carestia e a solidariedade entre trabalhadores, ficam eclipsados pela forma dramática da peça. Os conflitos e dilemas privados de Tião, o filho do sindicalista Otávio que se indispõe contra o pai e contra a greve, se sobrepunham aos temas públicos que começavam a interessar os jovens do Teatro de Arena em 1958.
Anos mais tarde, quando Guarnieri e Leon Hirszman escrevem o roteiro para a adaptação cinematográfica em 1981 eles modificam esta estrutura.
No filme a greve se impõe como tema capital. Ao contrário da dramaturgia de 1958, a ação não se restringe mais ao barraco da família. O assunto da luta social invade o interior da vida doméstica. Em alguma medida, o próprio autor buscou superar os entraves formais da peça que a tornavam ambivalente.
É o movimento contrário do que faz a adaptação dirigida por Dan Rosetto. A retomada da obra é toda centrada na personagem que Guarnieri queria criticar desde 1958. O Tião interpretado por Kiko Pissolato se transforma no herói. Ele é representado como um jovem altivo e batalhador, preocupado com os seus, mas sabedor dos imperativos de construir sua própria vida. A encenação coloca-o no centro de tudo e enfatiza o aspecto compreensível e corajoso de suas decisões.
A greve, em contrapartida, aparece como o fator desagregador. Por um lado é reduzida a um tipo de ideia fixa anacrônica vinda de um velho Otávio que bebe sem parar.
Ao mesmo tempo é a origem de um sectarismo violento, como quando Bráulio, exemplar sindicalista, aparece armado e ameaça de morte Tião por ter furado a greve. Logo em seguida, todos os personagens aparecem segurando pedras em torno de um Tião isolado. A cena criada pela encenação coloca-o como vítima de uma grande injustiça.
Na montagem atual, a luta dos grevistas é vista como desmedida ideológica. A solidariedade daqueles que não usam black-tie se transfigura no comportamento de manada que ataca e quase lincha o direito de escolha de Tião.
A peça se transforma então no seu exato oposto, um drama novelesco sobre um homem obrigado a tomar difíceis decisões. Tal disparate não deixa de ser, contudo, um termômetro dos tempos confusos em que vivemos.