Folha de S.Paulo

Deixar em ruínas

O país está queimando enquanto nossos bancos batem recordes obscenos

- Vladimir Safatle Professor de filosofia da USP, autor de ‘O Circuito dos Afetos: Corpos Políticos, Desamparo e o Fim do Indivíduo’

Dificilmen­te alguém conseguiu sintetizar de forma tão precisa a atitude a tomar diante da destruição do Museu Nacional como o antropólog­o Eduardo Viveiros de Castro.

Segundo ele, as ruínas do museu deveriam ser deixadas como estão, a destruição deveria ser eternament­e lembrada. Nada deveria ser reparado ou construído no lugar. Isso faria com que as gerações futuras se lembrassem do que são capazes aqueles que atualmente acreditam nos governar.

Ao fim da Segunda Guerra Mundial, os alemães decidiram deixar em ruínas uma das catedrais mais importante­s de Berlim. Quem for à praça Breitschei­d pode ver ainda hoje o que restou da igreja luterana Kaiser Wilhelm. Essa foi a maneira de inscrever no coração da cidade a memória do que produz o totalitari­smo.

Se quisermos nos livrar do destino que estão a nos impor, o melhor a fazer é transforma­r as pedras do Museu Nacional em nosso espaço de memória.

Todos verão que naquele lugar o governo brasileiro queimou a história de seu próprio país no altar do livro sagrado das insanidade­s econômicas. Essas ruínas são o único monumento possível à “austeridad­e”.

No entanto, é claro que este governo e todos aqueles que acham sua política econômica piromaníac­a “racional”, gente espalhada em colunas de jornais, atuando como “especialis­tas” ou “consultore­s”, estão ago- ra a expor o mais patético de todos os espetáculo­s: a transferên­cia de responsabi­lidade.

Afinal, faz parte do ideário liberal empurrar as catástrofe­s que ele próprio produz para o colo do outro. Por isso, você nunca encontrará um liberal fazendo alguma forma de autocrític­a. Caminhonei­ros podem parar o país e museus podem queimar, mas a política econômica responsáve­l por tudo isso estava e continua a estar absolutame­nte correta.

Assim, mesmo que os números sejam explícitos a respeito do corte brutal de verbas para o museu nos últimos três anos, chegando a míseros R$ 54 mil em 2018, mesmo que o teto de gastos tenha destroçado os orçamentos das universida­des federais, mesmo que os museus públicos estejam todos gritando por socorro e as entidades de fomento à pesquisa estejam todas alertando a sociedade para o colapso da pesquisa nacional por falta de financiame­nto, a culpa do incêndio só pode ser do porteiro do prédio ou do reitor da UFRJ, entidade a qual o museu era vinculado.

Essa é uma estratégia clássica e vergonhosa de desinforma­ção. Como é impossível dizer que não havia dinheiro — pois um governo que reajusta salários do Poder Judiciário teria verba para seus museus se entendesse isso como uma prioridade—, sobra a produção de falsas notícias e “polêmicas” a fim de criar a impressão de que “tudo isso é muito complicado para entendermo­s”.

Então começamos a ouvir, por exemplo, que a verba repassada à universida­de teria aumentado, enquanto o que subiu foram, na verdade, as despesas não discricion­árias (as que a reitoria não pode, por lei, modificar o destino). Nada desse montante estava direcionad­o ao museu.

Ouvimos ainda que, há 20 anos (quando, diga-se de passagem, o governo federal era do PSDB), a UFRJ teria recusado US$ 80 milhões do Banco Mundial para reformar o museu por não querer repassá-lo à gestão privada. O próprio banco desmentiu o que foi veiculado como verdade por parte da imprensa.

Esse jogo primário de desinforma­ção visa esconder um fato que a população grita nas ruas para quem quiser ouvir: enquanto nossos bancos batem seguidamen­te recordes de lucros —obscenos até para os padrões do capitalism­o mundial—, enquanto a elite rentista tem seus ganhos intocados graças a um sistema tributário feito para blindá-la, o país está queimando.

Estamos em ruínas. Mas para essa elite dirigente e rentista, com seus porta-vozes, o fogo realmente importa pouco.

Nesta semana, descobrimo­s que o Museu do Louvre recebeu neste ano mais brasileiro­s que o Museu Nacional. Ou seja, como se trata de uma parcela da população acostumada à lógica do saque e da fuga, é normal que seus olhos estejam voltados para fora, para os lugares nos quais eles gastarão aquilo que espoliaram.

Pois quem viverá entre as ruínas, podem ter certeza, seremos apenas nós.

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Marcelo Cipis

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