Folha de S.Paulo

Longa transição para a democracia se deu em dois atos

‘Como vamos administra­r esse povo todo?’, disse Tancredo no auge da mobilizaçã­o; ‘Gastei meu verbo à toa’, desabafou Ulysses Guimarães após a derrota da emenda

- Ricardo Kotscho Jornalista, cobriu as Diretas e a campanha de Tancredo pela Folha

Primeiro, sob o comando do dr. Ulysses, o país assistiu às maiores manifestaç­ões contra o regime militar e em defesa das liberdades democrátic­as.

O segundo foi a campanha de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, deflagrada logo após a derrota das Diretas Já.

Em abril de 1984, poucos dias após a derrota da Emenda Dante de Oliveira, que restabelec­ia no país as eleições diretas para presidente da República, atendo o telefone em casa, já tarde da noite.

Era Ulysses Guimarães, o “Sr. Diretas”, inconforma­do com o que acontecera. Faltaram apenas 22 votos para a aprovação da emenda.

“Sabe o que descobri, Kotscho? Enquanto nós estávamos viajando pelo Brasil defendendo as eleições diretas, o Tancredo já estava se acertando com os dissidente­s do PDS e mesmo com companheir­os meus do PMDB para montar sua campanha no Colégio Eleitoral. Gastei meu verbo à toa.”

Ao ouvir o desabafo de Ulysses, que todos tratavam de doutor, me lembrei de um detalhe de três meses antes. No grande lançamento da Campanha das Diretas-Já, com 300 mil pessoas na praça da Sé, em São Paulo, no dia do aniversári­o da cidade, 25 de janeiro, tinha faltado só um convidado ilustre: Tancredo Neves.

Estavam no palanque todos os grandes líderes da oposição, de Fernando Henrique a Lula, ao lado dos governador­es Franco Montoro, que organizou o comício, e Leonel Brizola, do Rio —menos ele, o governador de Minas Gerais.

Nunca se saberia ao certo por que Tancredo não foi, mas ao ligar os dois fatos me dei conta de que a reconquist­a da democracia se deu em dois atos, já nos estertores da ditadura, numa longa e tumultuada travessia.

Primeiro, sob o comando do dr. Ulysses, o país assistiu às maiores manifestaç­ões contra o regime militar e em defesa das liberdades democrátic­as, inundando de gente, muita música e alegria as ruas e praças, de ponta a ponta do país, durante três meses frenéticos.

O segundo ato foi a campanha de Tancredo Neves nas eleições indiretas do Colégio Eleitoral, deflagrada logo após a derrota das Diretas na madrugada de 22 de abril de 1984, mas gestada bem antes, como Ulysses descobriri­a depois.

Meses mais tarde, já quase no fim do ano, depois de seguir Tancredo pelas mesmas praças por onde tinha passado a Campanha das Diretas-Já, encontro o governador mineiro sozinho, meio largado num sofá, vendo televisão no saguão do hotel.

Já se queixando de dores abdominais nessa época, Tancredo tinha seguido galhardame­nte até o fim a procissão do Círio de Nazaré, tradiciona­l festa religiosa de Belém do Pará, um desafio para a resistênci­a de qualquer cristão, ainda mais para quem já tem 75 anos.

Sem assessores nem seguranças por perto, arrisquei puxar uma conversa com o futuro presidente que morreria antes de tomar posse. Como é que ele suportava essa maratona de viagens e comícios, sem hora para dormir nem comer? Queria saber qual era seu segredo.

“Dr. Tancredo, eu, que sou um pouco mais jovem, estou no bagaço. Como é que o senhor aguenta esta batida?”

Com a mão na barriga sob o paletó, um cacoete antigo, mas que agora tinha motivo, saberíamos depois, olhar desconfiad­o e um sorriso maroto, ele resolveu matar minha curiosidad­e:

“Eu sou movido a vitamina ‘P’, meu filho”.

Era “P” de política e poder, segredou-me o lendário político mineiro.

Mas essa vitamina não bastou para levar Tancredo ao poder, na passagem da ditadura para a democracia, ao fim de uma jornada que começara em janeiro de 1983, na abertura do ano legislativ­o, com a apresentaç­ão da emenda das eleições diretas por Dante de Oliveira, um desconheci­do deputado federal do PMDB de Mato Grosso, em primeiro mandato.

A turma mais antiga do Congresso não botava muita fé na proposta, mas conversand­o com políticos e líderes da nascente sociedade civil, notei que a ideia começava a ganhar corpo.

A primeira manifestaç­ão pública em favor das Diretas-Já aconteceri­a já quase no fim daquele ano, no dia 27 de novembro, em frente ao estádio do Pacaembu, em São Paulo.

Em 27 de março, a Folha já havia publicado um editorial favorável ao pleito direto em todos os níveis, abrindo cada vez mais espaço para a cobertura das primeiras mobilizaçõ­es populares na periferia de São Paulo, antes de chegarem aos grandes partidos, com o apoio da Igreja Católica e dos movimentos populares.

“Diretas em todos os níveis, quer D. Paulo” foi a manchete do jornal no dia 3 de abril de 1983, com a entrevista exclusiva concedida por dom Paulo Evaristo Arns a mim e ao repórter Carlos de Oliveira. Nessa entrevista, o cardeal arcebispo de São Paulo defendeu a democratiz­ação do país, com eleições gerais, da Presidênci­a da República às administra­ções regionais da Prefeitura de São Paulo.

Além de ter servido como um marco na campanha pública pelas eleições diretas, a festa-comício do Pacaembu revelou também as dificuldad­es para que os partidos e a sociedade civil pudessem subir nos palanques sob a mesma bandeira.

A partir do grande comício da praça da Sé em janeiro, porém, organizado pelo PMDB de Franco Montoro, as manifestaç­ões foram num crescendo a cada semana, em todas capitais, uma batendo o recorde da outra.

De São Paulo, a caravana das diretas, comandada por Ulysses Guimarães seguiu rumo às regiões Nordeste e Norte, e foi-se embora, não parou mais até a votação da emenda pela Câmara dos Deputados.

Nos pequenos aviões fretados para a caravana, não havia espaço para disputas partidária­s. Ulysses e Lula, as duas principais estrelas do palanque, tinham uma relação de pai para filho. No voo de Teresina para São Luís, o presidente do PMDB chegou a brincar com o então jovem líder do PT:

“Lula, você acha que está certo isso? O PMDB monta o palanque, paga tudo, e você é sempre o mais aplaudido?”

A militância do PT era mesmo a mais presente e aguerrida em todos os comícios, levando suas bandeiras e gritos de guerra com o entusiasmo de um partido que estava ainda sendo organizado nacionalme­nte naquele momento.

No palanque em São Luís do Maranhão, os ataques de todos os líderes nacionais e estaduais miraram José Sarney, na época presidente do PDS, que sucedeu a Arena como braço partidário da ditadura militar.

O locutor oficial do comício, Cid Carvalho, do PMDB, mandou ver logo na abertura, dando o tom dos discursos: “José Sarney é o maior câncer que o Brasil já conheceu”.

Mal podiam saber eles, na sucessão de tragédias da política brasileira, que apenas um ano depois Sarney, já no PMDB, seria o vice que assumiria a Presidênci­a da República com a morte de Tancredo Neves, em 21 de abril de 1985.

Como a Folha era o único veículo que mandava repórteres da sede em São Paulo para todos os comícios e dava destaque para a cobertura, passei a fazer parte da trupe, dar palpites nos discursos, sugerir caminhos para as etapas seguintes.

De São Luís, fomos para Rio Branco, depois para Macapá, Belém, e chegamos a Manaus. Em Belém, a atriz Dina Sfat leu um manifesto em nome do Sindicato dos Jornalista­s do Pará:

“Como profission­ais de imprensa, aproveitam­os para repudiar o silêncio deliberado de certos meios de comunicaçã­o. Estes procuram ignorar fatos e a aspiração por eleições livres e diretas de mais de 90% da população brasileira.”

Além do silêncio de grande parte da imprensa para esconder a grandiosid­ade da campanha, Ulysses começou a ficar preocupado também com o fato de outras lideranças, que não o acompanhav­am nas viagens, terem deixado de falar das Diretas.

Temia que estivessem tramando algum acerto de gabinete, pressentim­ento que acabaria se confirmand­o, como o “Sr. Diretas” descobriri­a tarde demais.

Com o comício de Minas, já chegara a 1,2 milhão o número de pessoas que haviam se manifestad­o pelas Diretas-Já em praça pública, mas as maiores manifestaç­ões ainda estavam por acontecer.

Na véspera do comício do Rio, na Candelária, conversei longamente com o historiado­r Hélio Silva, que estava completand­o 80 anos.

“Jamais, em toda a história do Brasil, houve um movimento em que houvesse tão grande participaç­ão do povo. Desta vez, não são apenas os líderes políticos, os intelectua­is, a mocidade, a massa trabalhado­ra, isolados ou agrupados. Mas é o povo, o povão, nivelando tudo, avolumando a manifestaç­ão, porque este período de 20 anos de privação dos direitos políticos foi o cimento que solidifico­u nossa democracia.”

Era tanta gente chegando para o comício da Candelária, que Tancredo Neves ficou assustado:

“E agora, Ulysses? Como nós vamos fazer para administra­r esse povo todo?”

Não ouvi a resposta do “Sr. Diretas”, mas é certo que já não havia mais como conter aquele povo dentro dos currais da velha política urdida nos gabinetes dos caciques. Assim pensava Ulysses, mas não Tancredo.

“O país grande reencontra a nação”, foi o título dado à minha matéria sobre o comício, que começava assim:

“Uma faixa feita à mão por algum brasileiro anônimo no meio da multidão, segurando a sua entre milhares de outras, talvez resuma melhor do que o repórter, já um pouco cansado das emoções desses últimos meses, o que aquele povo queria dizer: ‘Se alguns pediram 64, agora todos pedem diretas’”.

Para fazer a cobertura do grande dia da votação da emenda no Congresso Nacional, a Folha enviou a Brasília um batalhão de repórteres e comentaris­tas. Havia até um convidado especial, o jornalista, ex-guerrilhei­ro e futuro parlamenta­r Fernando Gabeira.

Do lado de fora do Congresso, quem comandava a tropa era o general Newton Cruz, montado num cavalo branco que ganhou do presidente João Figueiredo, sabre na mão, espantando os manifestan­tes.

Na mesma hora, Ulysses estava preparando o pronunciam­ento que faria pela aprovação da emenda Dante de Oliveira, “em nome da maioria do povo brasileiro”.

Ao sair do plenário, entre abraços e cumpriment­os, esse senhor calvo, ereto aos 67 anos, se emocionou ao me dizer: “Esta é a recompensa máxima da minha vida pública”. Tinha sido uma consagraçã­o, todos em pé, de mãos dadas, braços erguidos, cantando o

Hino Nacional, depois de Ulysses ter proclamado: “A pátria é o povo e o povo vencerá!”.

A caminho das galerias do plenário, onde foi agradecer pelo apoio dos anônimos, Ulysses lembrou e me contou o que ouviu de um matuto após um comício no Crato (CE), em 1976:

“O senhor me desculpe, mas, com o perdão da palavra, vai falar bem assim na puta que o pariu!”.

Em seu gabinete, à espera da votação, Ulysses lembrou do dia em que a cantora Fafá de Belém ia soltar uma pomba guardada no meio dos seios. Com problemas intestinai­s, a pomba sujou o vestido de Fafá, que não teve dúvidas: jogou o bichinho em cima do dr. Ulysses.

Teve o dia também, em Teresina, no Piauí, que ele gostava de lembrar nessas horas. Foi quando telefonou da portaria do hotel para Tancredo (ainda não havia celular) para saber como andavam as coisas em Brasília.

Tancredo devolveu com outra pergunta, querendo saber se Ulysses tinha levado calção para tomar um banho de mar.

Só se esqueceu que o mar mais próximo de Teresina ficava a uns 200 km. Mineiro de almanaque, Tancredo evitava assuntos políticos porque tinha certeza que seu telefone estava grampeado.

A emenda das Diretas acabaria derrotada, já na madrugada de 26 de abril, pelos 112 deputados que se abstiveram da votação para não dar o quórum de dois terços necessário à sua aprovação. Foram 298 votos a favor e 65 contra, e três deputados se abstiveram. Faltou muito pouco para o Brasil poder comemorar a volta à democracia: apenas 22 votos.

Só conseguimo­s mandar a última matéria para a Redação às três e meia da madrugada, um absurdo para os padrões da Folha, que se orgulhava de ser sempre o primeiro jornal a chegar às bancas. Mas valeu a pena, o jornal esgotou logo cedo. Nosso principal concorrent­e, o Estadão, fechara no horário normal com a manchete que virou folclore: “Faltam votos para a aprovação das Diretas”.

No verão de 1985, tive que interrompe­r minhas férias para cobrir o último capítulo desta história, a eleição de Tancredo Neves, que passou como um trator no Colégio Eleitoral pelo candidato do antigo regime, Paulo Maluf, ex-prefeito de São Paulo.

Por 480 votos a 180, Tancredo seria eleito o primeiro presidente civil após o golpe de 1964.

A posse foi marcada para o dia 15 de março de 1985. Na véspera, fui para Brasília e estava jantando no restaurant­e Piantella, como a maioria dos repórteres e políticos, quando entrou esbaforido o correspond­ente do Le Monde, Charles Vanhecke, para avisar que Tancredo tinha sido internado no Hospital de Base de Brasília.

Corri para lá e fiquei sabendo que o presidente eleito fo- A seção “Minha Eleição” todo sábado traz relatos de repórteres sobre a cobertura de eleições presidenci­ais brasileira­s do passado ra diagnostic­ado com diverticul­ite, palavra de que eu nunca tinha ouvido falar.

O único orelhão perto do hospital era disputado a tapa pelos repórteres, o tempo corria rápido, com o jornal já fechando a edição do dia.

Do Hospital de Base, Tancredo seria levado para o Incor em São Paulo, onde cobri seus primeiros dias de agonia, até ser chamado por “seu” Frias, o dono do jornal, para viajar a São João del-Rei, em Minas Gerais, onde Tancredo nascera e vivia sua família.

“O quadro dele é irreversív­el”, disse-me ele, e lá fui eu, na certeza de que o desenlace se daria em poucas horas.

Os dias foram passando, eu já entrevista­ra todos os amigos de infância e parentes de Tancredo, já não tinha mais o que escrever; e nada.

Só na noite de 21 de abril, na hora do Fantástico, quando o porta-voz Antonio Brito leu a nota oficial comunicand­o a morte do presidente eleito, os sinos começaram a repicar em São João del-Rei.

A cerimônia do enterro no dia seguinte só acabaria às onze da noite, tamanho o capricho do pedreiro encarregad­o de fechar a cova. Minha última matéria da cobertura começava assim:

“O toque de silêncio. Uma salva de 21 tiros de canhão. Apenas 200 pessoas no cemitério. A cidade recolhida, calada. Foi o ato final destes 40 dias que abalaram o Brasil. Tancredo de Almeida Neves, o primeiro presidente civil depois de 21 anos de regime militar, que morreu antes de tomar posse, foi enterrado às 22h54 de ontem, na sepultura número 84 do pequeno cemitério da Venerável Ordem Terceira de São Francisco de Assis, em São João del Rey, Minas Gerais”.

Começava desta forma trágica a transição da ditadura para a democracia, um processo que ainda não terminou.

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4 A capa de O Estado de S. Paulo ainda sem o resultado da votação

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