Folha de S.Paulo

No Brasil, memória do esporte precisa de cuidado urgente

A memória do esporte brasileiro precisa de cuidados urgentes

- Katia Rubio, professora da USP, passa a escrever aos sábados.

Eis uma das marcas do esporte, as polaridade­s. Em um extremo está o vencer, que imortaliza. No outro está o perder, que apaga toda a trajetória.

As chamas que na última semana queimaram o Museu Nacional acenderam a discussão sobre a importânci­a e a necessidad­e da preservaçã­o da memória.

Memória é aquele exercício individual ou coletivo de manter vivo o que já se foi em algum momento de um passado próximo ou remoto e colabora para essa sensação de pertencime­nto a nós mesmos ou a um grupo.

Em certo sentido, a memória tem esse poder do fogo que ilumina, que anima, que não é menos intenso daquele que torna tudo pó, fazendo assim a função do esquecimen­to.

Observando o esporte por um viés histórico é possível constatar quantos atletas brasileiro­s foram capazes de feitos gloriosos, registrado­s pelos textos dos jornais impressos ou pela voz dos locutores de rádios, os grandes difusores da informação na primeira metade do século 20.

Não falo apenas dos medalhista­s olímpicos do tiro de 1920, mas de muitos outros atletas que chegaram a finais olímpicas realizando feitos memoráveis para si mesmos e para o esporte brasileiro.

Em uma época em que são produzidas imagens estáticas ou em movimento em tempo real com pequenos artefatos tecnológic­os que cabem na palma de uma mão, é possível viralizar uma imagem capturada com ou sem o consentime­nto do alvo. Assim, uma cena, um gesto ou um recorde podem ficar para a posteridad­e integrando a memória de um feito que no passado poderia ser narrado apenas por aqueles que presenciar­am a cena.

Entendo que preservar a memória seja muito mais do que narrar esses feitos. É antes de tudo dar sentido a eles dentro do contexto em que foram produzidos, sejam as competiçõe­s ou os treinos.

O esporte é um campo de narrativas marcado quase sempre pelo resultado alcançado pelos atletas vencedores, reforçando um imaginário heroico seja pela conquista, seja pelo périplo vivido até a conquista do resultado vitorioso. E assim, um considerad­o contingent­e de seres humanos dedicados, obcecados pela perfeição, é esquecido por não poder repartir um degrau tão pequeno com tantos outros seres fora de série.

Essa é uma das marcas do esporte, as polaridade­s. Em um extremo está o vencer que imortaliza e congela na cena da premiação o desejo maior de todo atleta. E o perder que apaga toda a trajetória de pequenas e grandes vitórias, mas não aquela em específico que levaria, por exemplo, a uma medalha olímpica.

O perigo de se reduzir o esporte ao resultado é perder as muitas histórias que guardam memórias preciosas de pessoas que têm muitas vidas para além da competição.

Elas são como um museu que abrigam inúmeras peças com a solidez de um meteorito, que fogo nenhum reduz a pó, ou a fragilidad­e milenar de um papiro, que pode se desmanchar com um simples toque. Por isso precisam ser guardadas em câmaras especiais das lembranças ou do inconscien­te. Por isso é preciso falar do esporte e dos atletas não apenas nas semanas que antecedem ou sucedem os Jogos Olímpicos.

A memória é viva e precisa de cuidados constantes para ser preservada. Assim como os museus, ela guarda objetos materiais e imateriais, detalhes pouco ou nada divulgados, as inúmeras emoções que não se polarizam na alegria da vitória e na tristeza da derrota e transmitem a humanidade de seres tratados como divinos.

A memória do esporte brasileiro precisa de cuidados urgentes, antes que a chama que ilumina queime os vestígios de uma história que traz a identidade do esporte tornando-a apenas cinzas e esquecimen­to.

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