Folha de S.Paulo

Morre, aos 81, sambista Wilson Moreira, craque do partido-alto

Parceiro de Nei Lopes, teve músicas gravadas por Beth Carvalho e Clara Nunes

- Luiz Fernando Vianna Autor de “Zeca Pagodinho – A Vida que se Deixa Levar”

Morre, aos 81, Wilson Moreira, parceiro de Nei Lopes e sambista craque do partido-alto Canto alto brasileiro

Wilson Moreira é o retrato de um Brasil. Descendent­e de africanos escravizad­os, nasceu em 1936 na zona rural carioca, para onde tinham migrado, décadas antes, famílias desalojada­s pela crise do café no Vale do Paraíba.

Cresceu ouvindo jongos, calangos, canções de carreiro. São as sementes de sua música.

Escutou muito partido-alto e virou um craque dessa matriz do samba. Envolveu-se com o samba suburbano, de ritmo forte e pé no chão, e se tornou um de seus mestres.

No terreiro das escolas de samba, participou da criação da Mocidade Independen­te de Padre Miguel, vizinha do bairro em que nasceu (Realengo). Em 1968, foi acolhido com honras pela Portela.

Ganhou a vida como agente penitenciá­rio. É sabido que não se corrompia nem maltratava presos. Por isso, deles recebia respeito. Inspirado neles, fez sua canção mais conhecida, “Senhora Liberdade”, sucesso em 1979 na voz de Zezé Motta.

A letra é de Nei Lopes, com quem realizou um dos casamentos mais felizes da música brasileira —ambos tinham intensa vivência de subúrbio, samba, candomblé e tudo o que é relacionad­o à cultura afro-brasileira.

Às melodias de Moreira, carregadas de atavismos, somaram-se o humor, a contundênc­ia e a inteligênc­ia de Lopes.

Criações da dupla fizeram sucesso com Clara Nunes (“Coisa da Antiga”, 1977), Beth Carvalho (“Goiabada Cascão”, 1978), Alcione (“Gostoso Veneno”, 1979) e outros.

A boa acolhida lhes valeu o direito de gravar, em 1980, um álbum que se tornaria fundamenta­l na discografi­a do samba: “A Arte Negra de Wilson Moreira e Nei Lopes”. Na capa, os dois muito sérios, fazendo cara de militantes maus.

Cinco anos mais tarde, sorridente­s na foto, lançaram “O Partido Muito Alto de Wilson Moreira e Nei Lopes”.

Discos que poderia chamar de solo, Moreira lançou apenas quatro: “Peso na Balança” (1986), “Okolofé” (1989, no Japão, e 2000, no Brasil), “Entidades 1” (2002) e “Wilson Moreira e Baticun” (gravado em 1991 e só lançado em 2011).

Deixou um de inéditas pronto, “Tá com Medo, Tabaréu?”, com direção musical de Paulão 7 Cordas. Foi viabilizad­o por uma campanha de arrecadaçã­o na internet.

Entre outros parceiros está Zeca Pagodinho, com quem criou, por exemplo, “Judia de Mim” e “Quintal do Céu”.

Seu sorriso inquebrant­ável e sua bonomia incorrigív­el lhe davam um ar apolítico. Mas ele lutava à sua maneira. Esteve ao lado de Candeia no corajoso projeto da escola de samba Quilombo —para a qual fez, ao lado de Lopes, “Ao Povo em Forma de Arte” (1978), obra-prima de samba-enredo.

Na letra de “Questão de Identidade”, escreveu: “Pois eu assumo a pele escura/ Sou negro banto, origem África/ Soube da história dos meus ancestrais/ Sofreram tanto quanto os seus/ Mas, mesmo assim, somos iguais”.

A conciliaçã­o no verso final traduz o temperamen­to de Moreira. Ganhou o apelido de Alicate por causa da ênfase com que apertava as mãos dos outros.

A força do cumpriment­o se perdeu a partir de 1997, quando um derrame afetou o lado direito do corpo. Orgulhava-se de ter conseguido, algumas vezes, erguer o braço enquanto cantava “Senhora Liberdade”.

Tinha câncer na próstata havia dez anos. Internou-se no último dia 3, mas não resistiu aos problemas renais. Morreu na quinta (6), aos 81 anos, na unidade de Vila Isabel (zona norte) do Instituto Nacional do Câncer. Deixa viúva a produtora cultural Angela Nenzy.

No Solar Wilson Moreira, centro cultural que o casal mantinha com dificuldad­es na praça da Bandeira (zona norte), ele recebeu em 22 de julho o amigo Elton Medeiros, que completava 88 anos. Estava com o sorriso de sempre, como se a doença não lhe tirasse a paz.

Morreu um grande compositor. E um homem bom.

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Divulgação O sambista carioca Wilson Moreira, coautor de canções como ‘Judia de Mim’

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