Folha de S.Paulo

‘Apunhalast­e-me, canalha!’

- Alvaro Costa e Silva

Em suas confissões e memórias reunidas no livro “O Óbvio Ululante”, Nelson Rodrigues conta a forte impressão que lhe causou o assassinat­o em 1915 de Pinheiro Machado, o mais influente político da República Velha (1889-1930). O “Condestáve­l”, como era conhecido, foi atingido pelas costas no saguão do Hotel dos Estrangeir­os, no Flamengo. “Por que exatamente o punhal? Por que o ódio havia de ter a forma esguia e diáfana do punhal?”, perguntava-se Nelson.

O crime teria sido uma encomenda. Um complexo, sinistro e misterioso complô, com o qual nem a internet é capaz de competir. O tempo demonstrou que Manso de Paiva, o assassino, não seguiu as ordens de ninguém, só as confusões da sua cabeça. Até o famoso punhal revelou-se depois uma faca cega e enferrujad­a, adquirida numa feira livre. E não foi apenas uma estocada fatal como gritavam em caixa alta as manchetes com ponto de exclamação, mas duas.

Manso de Paiva cumpriu pena de 20 anos. Millôr Fernandes o conheceu na década de 1940, descascand­o tangerina com um canivete, na rampa do edifício da revista O Cruzeiro, no bairro da Saúde. “Chupava os bagos, cuspia as sementes. Meio idiotizado”, resumiu Millôr.

A morte de Pinheiro Machado completa 103 anos hoje. O “fazedor de presidente­s” marcou o fim de um Brasil. Um país em que os homens públicos usavam fraques e a presença de escarradei­ras de louça nos salões era obrigatóri­a. Na hora agá, o caudilho teria dito: “Mataste-me, canalha!”. Ou então: “Apunhalast­e-me, canalha!”. O próprio Nelson Rodrigues, bem chegado em hipérboles e auxeses, acreditava num simples e último suspiro: “Canalha”.

O maior espanto de Nelson era a arma branca utilizada no covarde atentado: “Por que havia de ser o punhal? Pinheiro Machado poderia ser assassinad­o a tiro, a bala”. E na época não havia tanta arma de fogo como agora.

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