Folha de S.Paulo

Três teses sobre legitimida­de

O veto legal à candidatur­a de Lula distingue a eleição de todas as anteriores

- Demétrio Magnoli Sociólogo e doutor em geografia humana

O veto legal à candidatur­a de Lula singulariz­a a eleição em curso, distinguin­do-a de todas as anteriores, desde a redemocrat­ização. Daí, emerge um debate sobre legitimida­de, que se espraia ao longo de três teses. A primeira diz que a eleição é legal e legítima; a segunda, que é ilegítima; a terceira, e mais interessan­te, faz a legitimida­de da eleição depender de seus resultados.

A visão convencion­al, adotada pela maioria dos partidos, não enxerga nenhum problema de legitimida­de. A Lei da Ficha Limpa, fonte do veto à candidatur­a de Lula, nasceu de um projeto de iniciativa popular e, depois de amplamente aprovada no Congresso, foi sancionada sem vetos pelo próprio Lula. É instrument­o legal de validade geral, que cancelou as mais diversas candidatur­as desde 2014, não uma ferramenta destinada a cassar os direitos de Lula ou do PT.

A eleição é legítima. O debate sobre o tema é que não é, derivando de um desejo de colocar Lula acima da lei ou de uma pervertida estratégia de campanha.

O segundo ponto de vista, adotado por correntes de extrema esquerda abrigadas no interior do PSOL ou em surpreende­nte aliança com o PT (caso do PCO), pode ser qualificad­o, com alguma ironia, de revolucion­ário. O veto a Lula é o prosseguim­ento do “golpe parlamenta­r” do impeachmen­t e tem a finalidade de ladrilhar o caminho das “reformas neoliberai­s”. O Judiciário participa do “golpe”, conduzindo a perseguiçã­o legal ao ex-presidente. Os mensageiro­s desta tese repetem, letra por letra, a narrativa desenvolvi­da pelo PT desde 2016, mas com finalidade­s muito diferentes.

A extrema esquerda habituou-se a encher seu potinho de sonhos com as sobras do lauto banquete lulista. Em 2002, apoiou a candidatur­a presidenci­al do PT na esperança de que a “classe trabalhado­ra” experiment­asse o governo de Lula — um “reformista” ou um “traidor”, a depender da versão — e, libertando-se de suas ilusões, ouvisse o chamado da Revolução (assim, com maiúscula). Hoje, ainda à beira da mesa, espera que a denúncia do veto a Lula finalmente desperte as massas de sua irritante letargia, propiciand­o o “assalto ao Céu”.

A terceira é a tese lulopetist­a. Na sua nunca explicitad­a inteireza, ela diz que a eleição terá sido legítima se Haddad vencer, mas terá sido ilegítima se Haddad perder. O alarido do protesto contra a “ilegitimid­ade” da eleição sem Lula, tão audível na etapa atual, cessará quando Haddad assumir o bastão, para só retornar na hipótese da derrota. A suspensão do juízo sobre a legitimida­de até a proclamaçã­o dos resultados viola

as regras elementare­s da lógica, mas atende a um imperativo partidário estratégic­o: na vitória, Haddad será o incontestá­vel presidente do Brasil; na derrota, o eleito não será mais que um títere da “elite golpista”. A história funciona mais ou menos

assim. Em caso de vitória, o povo terá “corrigido” o desvio iniciado com o impeachmen­t, derrotando o “golpe” e salvando a democracia. Já em caso de derrota, o desejo do povo de recolocar Lula no Planalto terá sido frustrado pela artimanha golpista do veto à candidatur­a. Restará, então, a via da resistênci­a, convocada por meio da denúncia da ilegitimid­ade do presidente eleito.

A tese convencion­al é legalista ao extremo: identifica a democracia às normas legais, negando-se a encarar o problema político da limitação da soberania dos eleitores posto pela Ficha Lima. A tese revolucion­ária é finalista: identifica a democracia (“burguesa”, evidenteme­nte) como o inimigo histórico e interpreta o veto a Lula como faísca providenci­al capaz de acender a grande fogueira da purificaçã­o. A tese lulopetist­a é, além de oportunist­a, autoritári­a: identifica a democracia ao sucesso eleitoral do Partido (assim, com maiúscula), exprimindo uma rejeição visceral ao princípio do pluralismo.

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