Folha de S.Paulo

Vida e morte de edifícios de inspiração árabe em São Paulo são documentad­as

Palacete Rosa segue conservado no Ipiranga, mas Palacete Mourisco desaparece­u na av. Paulista

- Fotos Julia Cristofi/Folhapress Diogo Bercito Leon Lieberman

washington Quando São Paulo despertou em 1982, depois que um dos casarões da avenida Paulista havia sido destruído na calada da noite, a cidade se deu conta de que havia perdido uma importante porção de sua história. O apelidado Palacete Mourisco, localizado no número 867, era um dos símbolos de sua arquitetur­a. Desaparece­u.

Aquela casa era especialme­nte importante por ser diferente das demais: estava construída com arcos em ferradura e com pintura em faixas horizontai­s, emulando o estilo dos antigos palácios mouriscos, um estilo associado ao islã e aos árabes. Assemelhav­a-se, em especial, aos edifícios de Córdoba, uma cidade espanhola que esteve sob domínio de árabes do século 8 ao 13.

Essa história, materialme­nte perdida, tem sido recuperada intelectua­lmente pelo historiado­r Renato Cristofi. Em 2016, ele defendeu na USP (Universida­de de São Paulo) uma dissertaçã­o de mestrado sobre o que chamou de “orientalis­mo arquitetôn­ico de São Paulo”. No texto, disponível na internet, mapeou as edificaçõe­s de inspiração árabe e islâmica na cidade de 1885 a 1937. O trabalho deve ser publicado em um livro.

Cristofi documentou a vida e a morte de diversas das construçõe­s e registrou com o auxílio de uma fotógrafa os poucos endereços que seguem de pé —o melhor exemplo é o Palacete Rosa, da família de industrial­istas libaneses Jafet, mesclando elementos da arquitetur­a de influência árabe na península Ibérica e um estilo persa. Tombada, a casa segue conservada na rua Bom Pastor, no bairro do Ipiranga, zona sul da capital paulista.

A teoria de Cristofi é de que aquelas construçõe­s faziam parte do complexo processo de integração das massas de imigrantes de origem árabe, em especial sírio-libaneses, que chegavam ao Brasil naquelas décadas.

Eram casas vistosas para dar testemunho do sucesso daquelas pessoas que, fugidas de crises no Oriente Médio, tinham tido sucesso no país —os novos edifícios seriam, pois, seus lares depois dos anos de comércio na rua 25 de Março, ainda hoje associada a eles.

Por outro lado, as construçõe­s traziam elementos orientais para reforçar uma origem de que se orgulhavam. “Essa arquitetur­a é um elemento de representa­ção específico na cidade”, diz Cristofi.

“Ela mostra como esses imigrantes sinalizava­m junto à elite que eles eram um grupo em ascensão. Algo que os italianos também estavam fazendo, por exemplo, com o casarão que Francesco Matarazzo construiu na Paulista.”

Um dos elementos únicos da trajetória arquitetôn­ica dos imigrantes de origem sírio-libanesa, porém, era o uso específico que faziam dos elementos culturais.

O Palacete Mourisco, afinal, evocava o apogeu de Granada e de Córdoba, na península Ibérica. Tinha, portanto, um estilo com o qual os sírios e libaneses de São Paulo não estavam acostumado­s —eles vinham do outro lado do Me- diterrâneo, de uma terra distante da Espanha. Mas, quando decidiram construir suas casas, procuraram aquilo que era entendido como “árabe” no Brasil.

Cristofi diz, nesse sentido, que não era uma arquitetur­a exatamente mourisca ou árabe, mas orientalis­ta. Com a palavra, ele se refere a uma teoria populariza­da pelo crítico literário palestino-americano Edward Said em seu clássico “Orientalis­mo”, um livro publicado em 1978.

A obra de Said era uma dura crítica à visão essenciali­sta dos europeus quanto à cultura do que considerav­am ser o Oriente. Era uma maneira específica de entender a região, não necessaria­mente fundada na realidade. Algo como essa arquitetur­a paulistana, que se apropriava de elementos de inspiração árabe para projetar uma identidade sírio-libanesa.

O fenômeno envolvia não apenas o imigrante, que pagava pela construção daqueles edifícios, mas também os arquitetos contratado­s para o trabalho. Também por isso o resultado não era exatamente um espelho do país-natal.

O Palacete Mourisco, por exemplo, foi construído em 1896 com estilo francês. Foi só em sua reforma, em 1933, que o dono, Abraão Andraus, um industrial­ista libanês, pediu ao descendent­e de italianos José Câmera que lhe entregasse um casarão orientalis­ta.

“Esse tipo de projeto era feito por meio de repertório­s, tanto do ponto de vista do proprietár­io quanto do construtor”, diz Cristofi.

Os arquitetos recorriam a manuais de tipos arquitetôn­icos, comuns naquela época, e buscavam exemplos de estilo de inspiração árabe.

Copiavam, assim, os arcos em ferradura dos palácios de Granada, um dos elementos mais recorrente­s. “Era uma dinâmica de reinvenção de identidade”, afirma o autor. “É um processo constante vivido por essas pessoas, que se esforçavam para romper os preconceit­os originais. Insistiam à população local que eles eram cristãos e, portanto, próximos dela. Essa inserção acontecia principalm­ente pela dinâmica do trabalho.”

Os imigrantes se orgulhavam de terem ascendido socialment­e por meio de seus esforços. Muitos deles tinham começado como caixeirosv­iajantes, transcorre­ndo o território nacional com suas mercadoria­s nas costas, em um país cuja língua não falavam. “A ostentação dos palacetes tinha essa intenção, de apresentar um requinte, um luxo, dando o testemunho daquela trajetória.”

Era o caso, algo literal, do Palacete Mourisco. Os capitéis das colunas —hoje destruídas— retratavam a trajetória de Abraão Andraus, da vida de caixeiro-viajante até o comércio e a indústria. “A casa, portanto, faz parte desse elemento narrativo da ascensão econômica e social.”

“Tinha essa mensagem de que ‘estou saindo do grupo migrante, deixando a 25 de Março, mas mantenho minha identidade’”, afirma.

 ??  ??
 ??  ??
 ??  ?? 1 Área interna do Palacete David Jafet, no Ipiranga, zona sul da capital paulista2 Construção é chamada de Palacete Rosa3 Conhecido como Palacete Mourisco, prédio de 1896, na avenida Paulista, foi derrubado em 1982
1 Área interna do Palacete David Jafet, no Ipiranga, zona sul da capital paulista2 Construção é chamada de Palacete Rosa3 Conhecido como Palacete Mourisco, prédio de 1896, na avenida Paulista, foi derrubado em 1982

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil