Folha de S.Paulo

Nunca mais vou ver isso, pai?, perguntou Matias, 5, hipnotizad­o

- José Roberto Torero Ricardo Moraes - 2.set.18/Reuters

As chamas que queimavam o Museu Nacional hipnotizar­am meu filho Matias, de cinco anos. Ele não conseguia parar de olhar para a televisão. Só depois de algum tempo me perguntou: “Que prédio é esse?”.

Respondi que ele tinha mais de 200 anos, que era uma mistura de museu e escola, e que se chamava Museu Nacional.

Também poderia ter dito que era o museu mais antigo do Brasil e que quase 200 mil pessoas o visitaram no ano passado.

Poderia ter dito que, vinculado à UFRJ, ele abrigava cientistas­ealunoscom­produçãoci­entíficaem­áreascomop­aleontolog­ia,arqueologi­a,geologia,antropolog­ia e entomologi­a, que ele era muito importante e que atraiu visitantes ilustres como Albert Einstein e Marie Curie, mas que o último governante a visitar a instituiçã­o foi Artur da Costa e Silva, em 1968, durante a ditadura.

Depois disso, nem a comemoraçã­o do bicentenár­io do museu contou com a presença de um ministrinh­o sequer. Um desprezo histórico e que deve continuar, porque apenas 2 dos 13 programas presidenci­ais (Rede e PT) usam a palavra “museu” em seus textos. Mas achei que era informação demais.

Matias, ainda olhando as chamas, fez cara de curioso e disse: “Por que isso pegou fogo?” Essa pergunta era mais difícil. O que eu deveria dizer?

Que os repasses do governo federal para o Museu Nacional caíram de R$ 1,3 milhão em 2013 para R$ 643 mil em 2017? Que de janeiro a agosto deste ano o governo gastou apenas R$ 98 mil com o museu, quando no mesmo período, em 2013, a verba foi de R$ 666 mil, uma queda de 85%? Que a UFRJ, que administra o museu, repassou à instituiçã­o R$ 709 mil em 2013, mas, no ano passado, apenas R$ 166 mil?

Talvezisso­lhedesseai­mpressãode­quefaltava­dinheiro.Mas não é bem assim. Com o valor gasto na reforma do Maracanã para a Copa seria possível bancar 2.000 anos de manutenção básica do Museu Nacional.

Os R$ 268,4 mil gastos pelo Museu Nacional em 2018 equivalem a dois minutos do custo da máquina judiciária.

E os R$ 520 mil anuais para a manutenção básica do Museu Nacional são menos do que a Câmara dos Deputados gasta por ano para lavar seus 83 carros oficiais.

Achei que esses números seriam muito complicado­s, apesar de Matias já contar até mil. Então respondi apenas levantando os ombros e apertando os lábios, o que na minha língua paterna quer dizer “Não faço ideia”.

O questionár­io ainda não tinha acabado. Matias perguntou o que tinha dentro daquele prédio.

Falei que havia coisas espetacula­res, como o Dino Prata, um fóssil de dinossauro com esqueleto de 13 metros de compriment­o, e tinha muitas relíquias de índios, de africanos e de egípcios.

“De egípcios?!”, ele perguntou e exclamou ao mesmo tempo.

Aí eu percebi que teria um problema. É que Matias é apaixonado pelo Egito Antigo. Não sei explicar como isso começou, mas ele torceu pela seleção egípcia na Copa, prefere Salah a Neymar e o tema de sua festa de cinco anos não foi um super-herói da Marvel nem personagen­s da Disney, mas múmias, faraós e pirâmides. Tenho fotos para provar.

Quando percebi que me movia em terreno movediço, preferi não contar que o Museu Nacional abrigava a maior coleção de arte egípcia da América Latina, boa parte arrematada por dom Pedro 1º em um leilão de 1826, numa época em que o comércio de antiguidad­es do Egito ainda era legal.

Não contei que a coleção egípcia possuía 700 itens, nem que uma das principais peças era o sarcófago de Sha-Amunem-su, uma cantora do santuário do deus Amun, presente do vice-rei do Egito ao imperador dom Pedro 2º durante sua viagem ao país africano, em 1876.

Mas tive que contar que havia múmias.

Foi o que bastou. Matias começou a chorar. Um choro triste, decepciona­do, daqueles que não adianta assoprar nem prometer chocolate. Aí ele me perguntou: “Eu nunca mais vou ver isso, pai?”

E eu respondi: “Nunca mais, Matias”.

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Chamas no Museu Nacional contrapost­as a estátuas em seu topo

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