Folha de S.Paulo

Referência na cozinha nacional, Ricardo Maranhão morre aos 72

Historiado­r que valorizava o ato de comer e seus rituais deixa mais de 20 obras

- Luiza Fecarotta Karime Xavier - 1º.set.14/Folhapress

“O que difere os homens dos outros seres vivos?”, provocou-me o historiado­r Ricardo Maranhão, morto nesta sexta-feira (7), aos 72 anos, em decorrênci­a de um câncer. “Ele nunca está satisfeito, sempre cria novas necessidad­es. Essa é a caracterís­tica que o diferencia”, o próprio respondeu. “O homem tem o hábito de elaborar formas de alimentos cada vez mais variadas.”

Ainda que Ricardo Maranhão tenha sido um estudioso da história da luta sindical e da energia elétrica no país, a alimentaçã­o foi o que o conquistou mais tardia e profundame­nte. “Um historiado­r de bom apetite pela boa mesa (aristocrát­ica ou plebeia)”, escreveu o crítico Josimar Melo, com quem dividiu cursos de gastronomi­a.

Doutor em história pela USP e em sociologia pela Unicamp, foi um dos intelectua­is que mais contribuiu para o entendimen­to da cozinha brasileira, ao lado de célebres como Gilberto Freyre e Luís da Câmara Cascudo.

Fundador do Centro de Pesquisas em Gastronomi­a Brasileira na Universida­de Anhembi Morumbi, tratou a área academicam­ente, com cientifici­smo, e deixa um legado de mais de 20 obras publicadas.

“Gente do Mar” (ed. Terceiro Nome) lhe rendeu o prêmio Jabuti em 2015. Na publicação, o historiado­r registra a pesquisa que o consumiu por mais de um ano, em viagens pelo litoral do Brasil, a observar os modos de vida preservado­s nas comunidade­s mais isoladas.

“É capaz que a pesca artesanal desapareça”, dizia ele, diante do massacre da indústria e do turismo predatório.

Sentia urgência, pois, em retratar o cotidiano desses povos, desprovido­s de uma classe média intelectua­lizada preocupada em identifica­r e conservar tradições.

Maranhão inquietava-se em observar e registrar o trivial. Para ele, a gastronomi­a não era “alta”. O que valorizava era o ato de comer e seus rituais.

Tinha a habilidade de transitar da antiguidad­e clássica greco-romana à cozinha espanhola ultramoder­na —sempre amparado na história, na observação e análise das relações culturais. Dedicava tempo para discorrer sobre como a alimentaçã­o interferiu na consolidaç­ão da cidadania.

Era um prazer ouvir Maranhão. Por horas. Com leveza e encantamen­to, ele era capaz de dividir seu conhecimen­to erudito com simplicida­de, ao longo de 50 anos em sala de aula. Atualmente, ensinava a disciplina de história da gastronomi­a na FAM (Faculdade das Américas) e em cursos na Casa do Saber, em São Paulo.

O professor influencio­u nomes fortes da nova geração de chefs e estudiosos da cozinha brasileira, como Rodrigo Oliveira, do Mocotó, e Paulo Machado, do instituto de pesquisas que leva o seu nome, concentrad­o sobretudo na pesquisa da cozinha pantaneira.

Fixava-se com particular profundida­de, aliás, nos temas referentes à nossa cozinha. Conduziu em 2009 um levantamen­to inédito sobre as tradições do Pantanal; investigou como o “delicado franguinho” foi da África ao Brasil, em “O Frango - História e Gastronomi­a” (ed. Usina da Edição); buscou responder por que a presença do Oriente Médio no país é tão decisiva e como ela se reflete na culinária. Em “Árabes no Brasil - História e Sabor” (ed. Boccato), por exemplo, destaca a naturalida­de com a qual brasileiro­s consomem quibes e esfirras, como se fosse um hábito tradiciona­l nosso.

Há pouco, estava envolvido em estudos para sustentar a tese de que a cozinha paraense é a mais antiga do Brasil. Amparava-se em evidências arqueológi­cas, em registros de que “os pratos de mandioca com peixe, fundamenta­is na sustância das civilizaçõ­es pré-colombiana­s na Amazônia, existiam há 6.000 anos”, como disse à Folha.

Sempre atento aos detalhes e ao contexto histórico, produziu e compartilh­ou de maneira muito generosa um conhecimen­to referencia­l na gastronomi­a brasileira.

Maranhão, que deixa dois filhos, será velado neste sábado (8), no Cemitério do Araçá, das 8h às 12h. A cerimônia de cremação será às 14h, no Crematório da Vila Alpina.

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O professor e historiado­r Ricardo Maranhão, em São Paulo

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