Tradutora oferece ao leitor acesso a livro onírico de James Joyce
Nova obra faz sínteses dos argumentos de cada capítulo da trama de infinitos fios sobrepostos de ‘Finnegans Wake’
Nestes tempos em que fofocas se espalham com a rapidez e a exponencialidade das redes universais, e julgamentos sumários podem ser feitos em minutos, nada mais oportuno do que rever um dos elementos do “Finnegans Wake”, de James Joyce: o boato que atenta à reputação de Humphrey Chimpden Earwicker (HCE, personagem de muitas identidades, como as demais do romance), que teria cometido um delito de natureza sexual, motivo de julgamento que ultrapassa sua morte e associa-se a suas diversas ressurreições e mutações.
Qual o fio da meada desse livro noturno, onírico? Nenhum ou incontáveis, como uma trama em camadas de quase infinitos fios sobrepostos. Mas dá para puxar um deles, seguir um percurso e contar uma das narrativas possíveis, à semelhança das múltiplas histórias possíveis do homem: esta é recontada num mosaico de ecos e reflexos por meio das relações entre pais, filhos e irmãos, que permitem perceber os conceitos cíclicos de ascensão-queda e fim-início, (des)orientadores do romance.
A tradutora Dirce Waltrick do Amarante, estudiosa de Joyce, elege competentemente uma linha pela qual se enfeixam fragmentos do livro, um modo de oferecer ao leitor um acesso a ele que inclui, ademais, sínteses do “argumento” de cada capítulo de que provêm os trechos traduzidos.
A organizadora relembra uma passagem de Roland Barthes sobre a fofoca, em seu “Fragmentos de um Discurso Amoroso”, para dizer que as personagens de FW reproduzem o que é contado por esse autor: “Um ouve uma história e vai contando para o outro e assim por diante ao longo das 628 páginas do romance”. De modo análogo às distorções de uma rede de intrigas, vista sob a não linearidade do sonho, o livro se reconta eternamente.
O rio de Dirce (“correorrio” é sua tradução para “riverrun”, palavra que abre o livro) nos leva do primeiro ao último capítulo da obra, ao longo de páginas bilíngues. Além do viés do fluxo, a tarefa envolve o modo de recriar o texto feito de palavras de múltipla significação, compostas de outras; referência radical, portanto, do que sempre é o desafio do tradutor: optar por certas formas e sentidos para construir um novo todo feito de outras partes (por exemplo, “our old ofender was humile, commune and ensectuous from his nature” torna-se “nosso velho infrator era humilde, comumnicativo e insextuoso por natureza”).
A tradutora considera uma de suas referências teóricas o estudo “A Tradução como Manipulação”, do linguista Cyril Aslanov, para quem o tradutor “oscila na interlíngua”, agindo como o droguista da “farmácia de manipulação” ou o pesquisador que manipula o código genético.
As fórmulas de Dirce são possibilidades de recriação que, conforme se espera, convencem ora mais, ora menos, instigando-nos, por vezes, a desvendar as referências de suas opções, o que alimenta a leitura. Recriação é escolha, não “traição”.
Por isso, sempre o traduzido é um renascimento, como é o caso da “Balada de Persse O’Reilly”, que Joyce cria para figurar em FW, referente à queda de HCE; o resultado em português seria mais pleno se, além de feito para ser lido, o fosse também para ser cantado segundo a partitura joyciana: “Nem os soldados do rei nem os seus cavalos/ Reissuincitarão seu corpus/ Pois um encanto não há na Irlanda e no inferno/ Capaz de erguer um Caim.”