Romances da escravidão merecem ser relidos
Relançadas, as obras do século 19 ‘A Cabana do Pai Tomás’ e ‘Úrsula’ envolvem tópicos que não podiam ser mais atuais
Os tópicos envolvidos não podiam ser mais atuais, e os romances quase não podiam ser mais antigos, em se tratando da América. Os tópicos: lugar de fala, empoderamento feminino, narrativa como interpretação do mundo, reparação a descendentes de escravizados. Os romances “A Cabana do Pai Tomás”, de 1852, e “Úrsula”, de 1859. Os dois são agora relançados.
O primeiro foi escrito pela norte-americana Harriet Beecher Stowe, mulher branca que se interessou pelo tema da escravidão especialmente depois de 1850, quando em seu país foi definida uma impiedosa lei que punia quem acobertasse escravizados em fuga.
Em tradução primorosa, atenta para os diversos níveis de registro e recriação escrita da língua falada, a caprichada nova edição ajuda muito a esclarecer dimensões correlatas —até mesmo o mistério da mudança operada no título, que converte o “tio” Tomás do original, “Uncle Tom’s Cabin”, em “pai” Tomás, alteração devida à tradução ao francês, ocorrida antes daquela ao português (em francês havia o registro de “pai” como “velho sábio”, relativo à tradição africana).
Já o segundo foi escrito pela brasileira (maranhense) Maria Firmina dos Reis, mulher negra, professora por grande esforço pessoal, em plena vigência da escravidão em nosso país. Fenômeno raríssimo em qualquer parte do mundo, “Úrsula” ganha quatro novas edições, todas de editoras porto-alegrenses (o livro está na lista de leituras obrigatórias do vestibular da UFRGS), que se somam a pelo menos duas outras recentes (PUC Minas e Uirapuru, 2017).
Os paralelos entre os dois livros são vários. O livro de Firmina tem uma fraquíssima trama romântica em primeiro plano, envolvendo um casal de brancos; mas no segundo plano ele guarda forte interesse —ali aparecem, em depoimentos testemunhais, relatos de vida e agruras de dois escravizados, a “preta Susana” e o jovem Túlio. Mãe adotiva dele, Susana repassa sua história com detalhes de todo ausentes da literatura canônica do período: conta da liberdade que tinha na África natal, da medonha travessia no tumbeiro, da vida no Brasil.
Mulher negra livre contando da vida de uma mulher negra escravizada em plena escravatura, tal é a proeza de Firmina, que porém foi pouquíssimo lida até agora, o que converte seu livro num quase lançamento. Bem ao contrário do livro de Harriet Stowe, que saiu primeiro em folhetim e, na forma de livro, vendeu não menos de 300 mil exemplares antes de alcançar um ano de vida.
A abolição legal no Brasil ocorreu em 1888, uma geração depois da libertação em terras estadunidenses, 1863. No processo abolicionista dos EUA, a “Cabana” teve papel forte, talvez decisivo, no plano sutil da opinião pública, ao colocar em cena figuras como o velho escravizado Tomás, fiel até o fim a seu dono, contra uma série de infortúnios e mesquinhezas, e a família de Eliza, seu filhinho Harry e o marido George, todos mestiços escravizados, gente inteligente, trabalhadora e, se livre, futurosa.
Ao contrário da obscuridade do enredo de Úrsula (algo como um gótico truncado), na “Cabana” as coisas são limpas e nítidas como uma telenovela brasileira bem feita —as ações são claras, os maus são maus desde logo, os bons são angelicais, e tudo é descrito e narrado com cuidados pedagógicos. Até o leitor desatento, como a paradigmática dona de casa da audiência das telenovelas, acompanha e decifra todos os lances do enredo.
Um exemplo sólido. Na cena inicial de Úrsula, um cavaleiro cai de seu cavalo e é socorrido por um jovem, que constata feliz que o cavaleiro não morreu. Então a voz narrativa o apresenta: era um pobre rapaz, com seus 25 anos e coração nobre; “o sangue africano refervia-lha nas veias; o mísero ligava-se à odiosa cadeia da escravidão”.
Firmina deverá ter pesado talvez muitas vezes as palavras para produzir essa tortuosa frase, que deixa o leitor em dúvida: ele se ligava à escravidão? Como? Em que ponta da corda estava? Bem, o jovem era um escravo. No Brasil, não obstante a brutalidade óbvia da escravidão, as palavras parecem não conseguir dizer as coisas claramente, nem então nem hoje. A “Cabana”, bem ao contrário, em meio a sua melosa reiteração maniqueísta começa o relato com escravos domésticos sendo negociados para saldar dívida de seu dono.
Trata-se de uma distância mensurável: Maria Firmina dos Reis não contava com leitores em número significativo, mas o cenário intelectual estava mais ocupado com rapapés retóricos do que com a descrição sincera e direta das coisas. Já Harriet Stowe escrevia em inglês, sob a lógica luterana que considerava a igualdade básica dos humanos e induzia à leitura todos, inclusive as mulheres.
O delicado e indireto Flaubert não gostou do livro de Stowe; reclamou explicitamente dos vários momentos em que a voz narrativa se dirige diretamente ao leitor e à leitora, quase agarrando pela gola a mãe que estivesse lendo aqueles horrores, para perguntar se aquilo era aceitável, convocando-a a luta pela emancipação. Enquanto isso, cá no Brasil, que escritor terá sequer lido a dura história da preta Susana?
A atual voga do Pantera Negra simboliza um novo momento da conversa pública sobre a vida de afrodescendentes na América. Os romances de Harriet Stowe, com seu transparente proselitismo melodramático, e de Maria Firmina dos Reis, com sua timidez cognitiva e sua limitação formal, que se convertem em dramático depoimento, precisam ser lidos e relidos como tarefa coletiva de reconhecimento e purgação.
Depois da Queda ***** Autor: Dennis Lehane. Tradução: Sergio Flaksman, ed. Companhia das Letras, R$ 54,90, 392 págs.
Rodrigo Garcia Lopes Escritor e crítico literário
O começo do mais recente romance de Dennis Lehane é promissor: “Numa terça-feira de maio, no trigésimo quinto ano da sua vida, Rachel matou o marido com um tiro. Ele cambaleou para trás com uma estranha expressão de confirmação no rosto, como se alguma parte dele sempre tivesse desconfiado que iria morrer pelas mãos de sua mulher.”
“Depois da Queda” é um “noir doméstico” pretensamente hitchcockiano. É o primeiro livro do autor em que a protagonista é uma mulher.
Estragada psicologicamente pela mãe, uma escritora de autoajuda, a jornalista Rachel Childs passa a vida procurando a identidade do seu pai biológico.
Com a recusa da mãe em revelar a verdade e com sua morte súbita, cabe à Rachel bus- car seu paradeiro. Contrata os serviços de um tal Brian Delacroix, que a ajuda na investigação por um tempo.
Quando ela descobre a identidade do pai é um anticlímax total. A motivação para tanto segredo parece pouco convincente.
Na segunda parte, acompanhamos a ascensão meteórica de Rachel, agora repórter de TV e casada com o produtor Sebastian, até ter um colapso ao vivo, em rede nacional, enquanto cobria um terremoto no Haiti. As imagens viralizam. Desmoralizada, encerra a carreira e torna-se uma reclusa, sendo acometida por frequentes e terríveis ataques de pânico.
Numa de suas raras saídas, cruza ao acaso com Brian. Apaixonam-se e se casam. Um dia ela vê algo na rua que a leva a suspeitar que marido está mentindo. É só aí que o thriller realmente começa.
Lehane levou as primeiras 106 páginas para nos convencer da fragilidade extrema e da personalidade problemática da protagonista, com seus constantes ataques de pânico e sua incapacidade de agir.
Agora, ela é capaz de dirigir carros de noite numa floresta nos cafundós do Maine, andar de elevador e táxi, mergulhar num mar escuro, atirar, enganar policiais e escapar de gângsteres. No entanto, é como se a personagem agisse agora como um robô (“Fui eu que fiz isso?”, ela chega a se perguntar).
Há pelo menos um episódio (página 289) que absolutamente não convence e põe tudo a perder. É exigir muita “suspensão voluntária de descrença” por parte do leitor. Os personagens secundários do livro são rasos e desinteressantes.
O final é pouco crível. E fica aberto para uma possível sequência, o que não seria uma boa ideia. A condução narrativa é burocrática, com direito a diálogos chatos e clichês espantosos, que parecem fruto da pressa do autor em terminar o livro (de fato, Lehane vendeu os direitos para o estúdio DreamWorks antes mesmo de terminá-lo).
Ter alegado que escreveu as primeiras cem páginas por último não melhora a impressão de uma profunda desconexão entre a primeira parte e as outras duas.
O autor não nos convence de que foi proposital, como uma pista falsa. Resta saber o que ele fará, já que vai assinar o roteiro do filme.
“Depois da Queda” está longe da atmosfera sombria e envolvente, do brilhantismo narrativo de “Sobre Meninos e Lobos”, “Gone, Baby, Gone”, e “Ilha do Medo”.
Mais um ótimo escritor de policiais a ser engolido por Hollywood?