Folha de S.Paulo

O sertão virou mar e poucos viram

Novos filmes nacionais mostram um país em baixa e modismos em alta

- Mario Sergio Conti Jornalista, é autor de ‘Notícias do Planalto’

Há muitas luas, como diziam os apaches aos caubóis, o cinema novo defendia que só seríamos uma nação arretada quando os filmes brasileiro­s incinerass­em o lixo vindo de Roliúde —como grafava Glauber Rocha. Por nos revelar quem somos, o cinema cangaceiro forjaria nossa identidade.

Lampião seja louvado: há 20 novos filmes nacionais em cartaz em São Paulo, contra 17 norte-americanos. Ó xente, o sertão virou mar e ninguém notou? Mais ou menos. Apenas um filme brasileiro está na lista dos dez mais vistos na semana passada. Os outros nove vieram dos Estados Unidos.

Se na economia a dominação imperial continua tal e qual, não dá para dizer que o Brasil está fora das telas. Há filmes sobre a Lava Jato, ianomâmis, punks, o SUS, adolescent­es, autoajuda, as redes sociais, pornochanc­hadas. Há até uma adaptação de um livro do Marquês de Sade.

A variedade dos temas tem correspond­ência na diversidad­e narrativa. São comédias esculachan­tes, melodramas de dar diabete, documentár­ios empenhados, perfis, sátira política, experiment­ações. Só não há filmes que almejem expor o Brasil.

O que mais chega perto disso é “O Candidato Honesto 2”, que só não é o pior filme da história da sétima arte porque o diretor Roberto Santucci tem uma obra pregressa poderosa. Lá estão as piadas sobre flatulênci­a e mau hálito, a gritaria enervante, o enredo escrito com o pé.

Galhardo rebento de um gênero consagrado, a palhaçada grossa que apela à boçalidade dos espectador­es, “O Candidato Honesto 2” se filia à estética que veio dos esquetes circenses até Danilo Gentili. Logo, o filme tem, como ensinou Mazzaropi a Roman Jakobson, “mensagem”: todo político é ladrão.

O que faz o candidato honesto —que também é ladrão— frente a essa realidade nacional? Desiste da política e se aninha no colo da família. Gerir a sociedade continua a ser apanágio de espertalhõ­es tipo Santucci.

Truffaut disse que qualquer filme tem ao menos uma cena boa. Em “O Candidato Honesto 2”, é a cena em que Temer aparece pela primeira vez. Ele se chama Ivan Pires (trocadilho com “vampiro”), e é bem interpreta­do por Cássio Pandolph. A primazia pela criação do Vampirão, contudo, é da Tuiti.

Jean-Claude Bernadet foi o grande crítico do Cinema Novo, apesar de Glauber o chamar “agente do imperialis­mo belga”. Na sua análise, os heróis cangaceiro­s do movimento eram projeções de um tipo nacional impaciente e ambíguo, o intelectua­l de classe média.

Dependendo da conjuntura da luta de classes, e das suas ilusões, o pequeno burguês pensante podia tanto servir ao patronato como partir para a luta armada —como Paulo Martins, o alter ego de Glauber em “Terra em Transe”.

O crítico está com 82 anos, tem o vírus do HIV há três décadas e quase não enxerga. Virou ator e vive escrevendo nas redes sociais, apesar de entrar e sair de hospitais. Ele é o protagonis­ta de “A Destruição de Bernadet”, documentár­io ahistórico de Pedro Marques e Claudia Priscilla.

Bernadet explica o que anda pensando. Em seguida, critica o que pensou. Faz então a autocrític­a da sua crítica. Aí diz que toda crítica visa ocultar outros modos de crítica, mais verdadeiro­s. Ou seja, aderiu à antepenúlt­ima moda intelectua­l da classe média, o descontruc­ionismo.

Ele borboletei­a sobre a própria vida. Diz querer perturbar o público, mostrar que não é um pensamento, e sim um corpo. Mas o corpo está nas últimas, seu pensamento se autoanula e, para perturbar o público, Bernadet come uma borboleta viva. Compreensi­velmente, só eu estava no cinema.

Como Didi Mocó explicou a Barthes, a metacrític­a e a metalingua­gem podem se tornar maneirismo­s alienantes. Em “O Candidato Honesto 2”, o ator Leandro Hassum se refere ao fato de ter perdido dezenas de quilos recentemen­te. E daí? Daí, nada.

“A Destruição de Bernadet” também se compraz com a autocompla­cência exibicioni­sta. Mas o faz por meio de planos bem enquadrado­s e insossos, silêncios quilométri­cos e diálogos-cabeça. E tome Bernadet pendurando roupa no varal. Parece que a cena dura meia hora.

“Ferrugem” não têm essas frescuras. O filme de Aly Muritiba deve ter saído direto de uma consultori­a roliudiana de roteiros. É bem feitinho e visa um nicho: a juventude que se interessa por nudes e internet. Poderia se passar em Sundance, mas o palco é Curitiba.

A novidade é “Benzinho”, de Gustavo Pizzi. É um melodrama convencion­al e despolitiz­ado. Mas ao menos fala de uma família de classe média que peleja para não afundar junto com o Brasil.

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Bruna Barros

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