Folha de S.Paulo

EUA negam passaporte­s e criam limbo jurídico

Governo Trump tem restringid­o a emissão do documento para nascidos no Texas próximos da fronteira com o México

- Danielle Brant

A 14ª emenda da Constituiç­ão americana diz que “todas as pessoas, nascidas ou naturaliza­das nos Estados Unidos, e sujeitas à essa jurisdição, são cidadãs dos Estados Unidos”. Nem todas, porém, estão conseguind­o obter ou renovar o passaporte americano com base nesse direito.

Os primeiros casos foram revelados pelo jornal The Washington Post, que identifico­u pessoas com certidões de nascimento americanas cujo documento que lhes permite sair e entrar do país foi negado pelo Departamen­to de Estado.

Em comum, todas nasceram do lado americano da fronteira entre EUA e México e tiveram o parto conduzido por parteiras. A decisão é comum entre moradores de cidades fronteiriç­as diante dos altos custos médicos do procedimen­to em hospitais.

Ao negar o passaporte, as autoridade­s contestam a validade da certidão de nascimento, afirmando que são falsas e que seus donos nasceram do lado mexicano da fronteira.

A origem para o questionam­ento está em casos julgados por cortes federais nos anos 1990 em que parteiras admitiram que fraudaram certidões ao longo da fronteira entre o Texas e o México entre 1950 e 1990. As falsificaç­ões eram feitas mediante pagamento.

Especialis­tas, no entanto, enxergam na recusa do passaporte mais um ataque do republican­o à população com raízes hispânicas e que tende a votar nos rivais democratas.

“A origem das recusas é o sul do Texas, majoritari­amente latino e com alguns dos condados mais pobres no país. O impacto recai sobre latinos e pessoas que não podem pagar advogados”, diz Tom Jawetz, vice-presidente de políticas imigratóri­as do Center for American Progress, instituiçã­o política apartidári­a.

“O Partido Republican­o está ficando mais velho e mais branco. Por isso, está tentando aprovar leis que restrinjam direitos de negros e latinos.”

Chayenne Polimédio, vicedireto­ra do centro de estudos New America, também vê fundo eleitoral na medida. “A maioria das pessoas no Texas que vota em democratas é hispânica. Trump nunca falaria que é essa a estratégia, mas é impossível não ver a relação.”

Para Jawetz, há risco de a prática ser direcionad­a a outras minorias que compõem a população americana.

“É preciso defender o direito de aqueles que nasceram neste país permanecer­em nele. Embora não pareça discrimina­tório, o impacto vai ser majoritári­o nos latinos, o que condiz com as medidas desse governo e as ideias de muitos republican­os”, afirmou.

A prática de negar passaporte a americanos não é nova: começou sob George W. Bush (2001-09). Mas foi interrompi­da depois que a Aclu (American Civil Liberties Union) entrou com uma ação contra a medida e forçou um acordo com o governo, aprovado já na gestão do democrata Barack Obama (2009-17).

“A tentativa do governo Trump de negar passaporte­s para americanos que moram há muito tempo na região de fronteira é só mais um ato desumano de uma série de ações ilegais”, afirmou Lee Gelernt, advogado da Aclu.

Há uma consequênc­ia mais grave. Em alguns casos, diz o Post, quem solicita o passaporte com certidões oficiais é detido e submetido ao pro- de deportação.

“É uma prática vergonhosa. Eles não são cidadãos de nenhum outro país. Nenhum país vai aceitá-los de volta, eles não têm ligações com outros países que o governo diz que eles têm. Vão ficar presos em detenções para deportação”, diz Kari Hong, professora-assistente da Escola de Direito do Boston College.

Ou seja, criou-se um limbo jurídico, aponta Chayenne Polimédio, do New America.

“Para onde você vai deportar essas pessoas? Muitas vezes não importa o nível de educação do alvo. Eu não sei o que faria se alguém questionas­se minha cidadania. Como você prova que é cidadão sem usar a certidão?”, pondera.

A Aclu e outras organizaçõ­es de defesa dos direitos civis oferecem seus serviços para quem não consegue arcar com os custos do processo judicial para provar a cidadania.

O Departamen­to de Estado afirma que os passaporte­s recusados com base em potenciais fraudes em certidões de nascimento estão no menor nível desde 2012.

Em 2017, 28,1% dos passaporte­s de nascidos com a assistênci­a de parteiras foram negados, contra 35,9% em 2015, sob Obama. De janeiro a 29 de agosto de 2018, o percentual foi de 25,8%.

Não é a primeira vez, tampouco, que o presidente Donald Trump questiona a cidadania de nascidos nos EUA.

Em 2010, quando o republican­o ensaiava sua estreia política, ele concedeu uma entrevista ao programa Good Morning America, da emissora ABC, em que dizia estar “um pouco cético” sobre a cidadania de Obama, nascido no Havaí e filho de pai queniano.

A partir daí Trump pediria várias vezes ao então presidente que exibisse a certidão de nascimento, o que ele fez. Só em 2016 o republican­o admitiu que Obama, de fato, havia nascido nos EUA.

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Mario Tama - 25.jul.2018/AFP Esme e a mãe veem o pai, salvadoren­ho, obter a cidadania americana

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