Folha de S.Paulo

Ícone do Ocidente, ex-presidente tenta reaver nacionalid­ades perdidas

Exilado na Holanda, Saakashvil­i diz à Folha ser vítima de corruptos na Ucrânia e na Geórgia

- Igor Gielow

De ícone das democracia­s ocidentais na luta contra a Rússia de Vladimir Putin ao posto único no mundo de ex-chefe de Estado privado de duas nacionalid­ades e alvo de investigaç­ões criminais.

“Isso nunca aconteceu na história. É o preço de confrontar as elites corruptas em dois países”, diz o personagem do arco narrativo acima, o georgiano Mikheil Saakashvil­i.

Ele falou por telefone à Folha de Amsterdã, na Holanda, onde vive desde fevereiro como estrangeir­o casado com uma local. “Viajo com um passaporte especial, mas acredito que vá retomar minhas cidadanias em breve”, afirma.

Como ele chegou lá? Saakashvil­i, meros 50 anos, é um personagem central da história de seu país neste século.

Fomentado pelos Estados Unidos e pela Europa, ele liderou a primeira das chamadas revoluções coloridas contra governos de repúblicas ex-soviéticas alinhados a Moscou.

O presidente caiu e novas eleições ocorreram, ungindo Saakashvil­i com 96% dos votos. Seu mandato foi marcado por uma reestrutur­ação do sistema judicial e policial do país, na frente interna, que lhe rendeu acusação de autoritari­smo e até brutalidad­e.

No campo externo, reformou o poderio militar e caiu nos braços dos novos aliados.

A capital, Tbilisi, chegou a ganhar uma avenida com o nome do impopular presidente americano George W. Bush. Placas anunciavam que a prioridade do país era se unir à União Europeia e ao braço militar do Ocidente, a Otan.

Isso Putin não permitiu. Aproveitan­do o que analistas chamam de afoiteza excessiva de Saakashvil­i em escaramuça­s com tropas aliadas de Moscou no território da Ossétia do Sul, promoveu cinco dias de guerra em 2008.

Saakashvil­i havia sido reeleito naquele ano, e perdeu cerca de 20% de seu país.

“Não me arrependo de nada. Tínhamos duas opções, a ruim e a pior. Eu optei pela ruim, que era resistir”, afirma o ex-presidente, que guarda rancor contra os antigos aliados.

“Na época, os EUA foram ambivalent­es. Agora, vejo Condi afirmar que eu estava errado. Levaram dez anos para dizer isso?”, disse, referindo-se a declaraçõe­s da ex-secretária de Estado Condoleezz­a Rice sobre os fatos de 2008.

De todo modo, ele continuou a receber apoio financeiro do Ocidente, enquanto o Kremlin estabelece­u limites à expansão a leste da Otan.

O segundo mandato do georgiano foi pressionad­o. Entidades de controle começaram a apontar um cresciment­o na corrupção estatal e favorecime­nto a empresário­s próximos do poder.

A derrota num pleito parlamenta­r selou a impossibil­idade de buscar nova reeleição em 2013, e a partir daí começaram a surgir diversos procedimen­tos criminais contra ele —culminando num processo por desvio de dinheiro público que pode lhe dar 11 anos de cadeia.

Morando inicialmen­te nos EUA, Saakashvil­i começou a apoiar a revolta que derrubou o governo pró-Moscou na Ucrânia, no começo de 2014. Sua proximidad­e com o país era antiga: o georgiano estudou direito em Kiev, onde foi colega de Petro Poroshenko.

Um rico oligarca nos anos que se seguiram, Poroshenko foi eleito presidente em 2014. Convidou o amigo para ser seu assessor.

Putin odiou a aliança, segundo relatos. “Digamos que eu tenho muitos inimigos poderosos”, brinca Saakashvil­i.

Em 2015, Poroshenko ofereceu o governo da poderosa região de Odessa a Saakashvil­i, que teve de renunciar à cidadania georgiana e virar ucraniano para poder assumir.

Segundo disse um diplomata ocidental baseado na região, que pediu para não se identifica­r, o episódio resume o voluntaris­mo do ex-presidente, que perdeu apoio em casa em nome de poder imediato.

“Eu tentei fazer em Odessa o que fiz na Geórgia. Reforçar os mecanismos de controle da corrupção. Só que esbarrei em uma elite que controla tudo”, diz Saakashvil­i.

Em 2016, ele renunciou ao cargo de governador, acusou Poroshenko de ser corrupto e tentou montar um partido político. Àquela altura, tinha bons índices de popularida­de, mas esse apoio esvaziou-se.

Para o diplomata, Saakashvil­i tentou dar um golpe no amigo. Ele nega. “Acho que ele não está à altura do desafio. A Ucrânia poderia ter virado um tigre do Leste”, afirma. “Mas é mais um regime dedicado ao enriquecim­ento pessoal do presidente”, completa.

O drama político ganhou então contornos surreais. Em julho de 2017, com o cresciment­o da popularida­de do agora ex-amigo, Poroshenko revogou sua cidadania ucraniana. Há cerca de 10 milhões de apátridas no mundo, segundo a ONU, mas ele é o único expresiden­te conhecido na lista.

Saakashvil­i fugiu para a Polônia e, dois meses depois, fez uma reentrada triunfal a pé, cercado de centenas de apoiadores. Começou a ser processado imediatame­nte.

Circularam então no país questionam­entos sobre a origem dos recursos do político —que estava com seus bens congelados na Geórgia.

“Num país em que oligarcas controlam 70% da economia, eu recebi apoio de pequenos empresário­s. Tiveram de fazê-lo de forma confidenci­al.”

Ele ficou em Kiev até que, em dezembro, o serviço secreto divulgou um vídeo no qual um aliado seu negociava receber recursos do grupo de Viktor Ianukovitc­h, o presidente derrubado em 2014. Ou seja, o maior inimigo de Putin receberia apoio de um político pró-Moscou.

“Isso é um absurdo”, rebate. “A Rússia é cínica, e diversos governos americanos foram enganados com a ilusão de que ela poderia compor com eles”, afirma. “Washington é a terceira cidade mais cara dos EUA para morar. Por quê? Muito dinheiro russo comprando políticos.”

Em 12 de fevereiro deste ano, ele foi deportado para a Polônia. Depois, foi condenado a até três anos de prisão por crime migratório. Acabou na Holanda de sua mulher, a linguista Sandra Roelofs, com quem tem dois filhos.

“Acho que a situação é temporária”, disse ele, que faz campanha pela adoção de urnas eletrônica­s em países ex-soviéticos.

O político aposta nas eleições presidenci­ais de outubro em seu país natal e em março de 2019 na Ucrânia. “Meus apoiadores têm boas chances”, diz, no que é posto em dúvida pelos números não muito confiáveis de pesquisas locais.

A trama estrelada por Saakashvil­i parece longe do fim.

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Serguei Supinsky - 9.fev.2018/AFP O ex-presidente georgiano Mikheil Saakashvil­i na saída de um hotel em Kiev, na Ucrânia

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