Folha de S.Paulo

O escapismo como regra

Hoje nenhuma novela ousa capturar o espírito do tempo, como fez ‘Vale Tudo’

- Mauricio Stycer Jornalista e crítico de TV, autor de ‘Adeus, Controle Remoto’. É mestre em sociologia pela USP

A morte de Beatriz Segall nesta quarta-feira (5) recolocou em pauta, mais uma vez, a novela “Vale Tudo”, exibida pela Globo originalme­nte entre maio de 1988 e janeiro do ano seguinte.

No papel da ricaça Odete Roitman, a atriz aparece pela primeira vez no capítulo 29. Preparando sua chegada ao Rio, vinda de Paris, a vilã recomenda à irmã Celina (Nathalia Timberg): “Reserve uma suíte presidenci­al num desses hotéis limpinhos, de preferênci­a que não tenha mendigos na porta tentando agarrar a gente”.

Escrita por Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères, “Vale Tudo” fez muito sucesso ao ser exibida e permaneceu no imaginário do espectador como uma das melhores novelas já feitas porque, entre outros motivos, capturou o espírito do seu tempo.

No livro “Autores – História da Teledramat­urgia” (ed. Globo, 2008), Braga conta que teve a ideia em meio a uma discussão familiar, na qual seu padrinho, um delegado de polícia honesto, foi chamado de “medíocre e babaca” por um parente.

“‘Vale Tudo’ nasceu dessa discussão, da figura do meu padrinho e da distorção —presente em praticamen­te todo o país— dos que acham que quem não é corrupto é babaca. Foi a única novela em que, antes de ter a história, eu já tinha a temática. Eu queria fazer uma novela sobre o seguinte assunto: ‘Vale a pena ser honesto num país onde todo mundo é desonesto?’ Foi uma novela muito didática”, conta Braga.

“Vale Tudo” descreve, desde o seu título, um momento de enorme desesperan­ça. Exemplo maior, a arrivista Maria de Fátima (Glória Pires) vai pisar no pescoço da própria mãe, Raquel (Regina Duarte), para se dar bem na vida.

A música-tema, de Cazuza, Nilo Roméro e George Israel, se intitula “Brasil” e pergunta: “Brasil / Qual é o teu negócio? / O nome do teu sócio? / Confia em mim”. No final da novela, o vilão Marco Aurélio (Reginaldo Faria), impune, foge do país num jatinho dando uma banana para o público.

Aquele era o clima no país, na visão dos autores, no final do governo Sarney. O último capítulo foi exibido dez meses antes da eleição presidenci­al, a primeira que ocorreria no Brasil desde 1960. Eleição vencida, lembre, por Fernando Collor.

Trinta anos depois de “Vale Tudo”, o clima novamente parece ser de desesperan­ça, mas nenhuma novela da Globo ousa capturá-lo. Ao contrário. O cardápio oferecido pela emissora é de puro escapismo.

No horário das 18h, está perto do fim “Orgulho e Paixão”, uma trama inspirada em Jane Austen, ambientada em 1910. Às 19h30, “O Tempo Não Para” é protagoniz­ada por personagen­s de 1886 que passaram 132 anos congelados e estão descobrind­o a São Paulo atual.

Já no horário nobre, a emissora exibe desde maio “Segundo Sol”, a história de um cantor de axé que fingiu a própria morte por 18 anos. Nas palavras do autor, João Emanuel Carneiro, trata-se de “uma novela singela, de fácil compreensã­o e de um canal direto com o público”.

Carneiro pode ter sido levado a isso por causa da incompreen­são e do insucesso, em matéria de audiência, de “A Regra do Jogo” (2015), sua novela anterior. Foi uma trama pesada, que procurou mostrar como uma facção criminosa se entranhou na sociedade, com ramificaçõ­es em todas as classes sociais.

“Esta, agora (‘Segundo Sol’), é quase uma história infantojuv­enil”, disse antes da estreia, em entrevista a Cristina Padiglione. Eu diria infantil mesmo. Rocamboles­ca, repetitiva e nada ambiciosa, a novela que está no ar é uma decepção para os fãs mais exigentes do autor de “Avenida Brasil” e “A Favorita”.

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