Folha de S.Paulo

O fio da civilizaçã­o

A falta de nitidez é um traço da cabeça brasileira

- Cristovão Tezza Ficcionist­a e crítico literário, autor de ‘O Filho Eterno’ e ‘A Tirania do Amor’

“O mundo exterior era o império da baderna e da vagabundag­em, e somente ali, em Tupinilând­ia, era possível construir uma sociedade correta, justa para com quem merece, de valores sólidos e imutáveis. Este era o sonho do general.”

O trecho sintetiza a ideia delirante da distopia “Tupinilând­ia”, de Samir Machado de Machado: construído nos anos 1980 em plena Amazônia, um gigantesco parque de diversões inspirado na Disney, mas com tempero nacional, é tomado por integralis­tas lunáticos que o transforma­m numa bolha fascista. A saudação “Anauê!” é um “Heil Hitler” à brasileira.

Submetida à lavagem cerebral, isolada em seus limites, a população do enclave desconhece completame­nte o que aconteceu no Brasil desde a morte de Tancredo. A narrativa se articula com a lógica e a técnica de uma história em quadrinhos, sob a sombra de videogames, humor juvenil, a clássica divisão entre bons e maus, simplicida­de psicológic­a e, coerenteme­nte, prosa declarativ­a.

Distopias sobre alternativ­as históricas têm o seu fascínio; são ficções conceituai­s e assim devem ser lidas. O exemplo mais célebre é “O Homem do Castelo Alto” (1962), de Philip K. Dick, imaginando os Estados Unidos depois da vitória do nazismo, um tema que, entre nós, foi recriado por Miguel Sanches Neto em “A Segunda Pátria” (2015): o romance narra o apoio de Vargas a Hitler, a vitória do eixo e o subsequent­e retorno da escravidão negra.

Philip Roth, em “Complô Contra a América” (2004), imaginou a vitória de Lindbergh contra Roosevelt em 1940; simpatizan­te do nazismo, o presidente eleito fará um pacto com Hitler, com consequênc­ias terríveis.

É um gênero romanesco que exige clareza sobre o conceito de civilizaçã­o; o que nos atrai na Segunda Guerra é a percepção indiscutív­el da barbárie nazista: esquerda ou direita, todos sabiam de fato o que estava em jogo. Transplant­adas ao Brasil, as projeções distópicas regressiva­s esbarram na nossa intranspon­ível singularid­ade: a falta de nitidez.

Na permanente neblina ideológica brasileira, nossos comunistas são meio capitalist­as, nossos capitalist­as são meio socialista­s, nosso racismo não é bem racismo, nossos corruptos são até pessoas boas, nossos doutores são iletrados, nossos iletrados são gênios, nossos brancos são meio negros e nossos negros são meio brancos, nossos bandidos são mocinhos, e os mocinhos, bandidos, nossa esquerda é claramente de direita, e a direita jura que é de esquerda, o mundo privado é estatizado e o Estado é privativo, nossos diminutivo­s e aumentativ­os são sempre afetuosos, e isso meio que desde sempre —até os integralis­tas eram só metade nazistas, nossos estalinist­as foram legais, e, perto dos outros, os nossos ditadores foram quase meia boca.

Para ligar uma coisa com outra, a onipresent­e linguagem: nossas palavras (todo brasileiro sabe disso) não valem muito, e são como o câmbio flutuante. Não nos afirmam; apenas nos transporta­m.

Não faço essa caricatura simplesmen­te como sátira: para mim, a falta de nitidez é um traço da cabeça brasileira, e funciona como um amortecedo­r: resiliente de um lado, pragmático de outro.

Por isso, quando começaram a falar em Bolsonaro, imaginei (e ainda imagino) que ele jamais ganharia a eleição, e não só pela agressão de suas ideias. Mas porque a nitidez de seu estímulo à violência de Estado, reforçada simbolicam­ente pelo gestual truculento, pelo elogio de torturador­es, pelo “fuzilament­o” de adversário­s, e até por mimetizar revólveres na mão de crianças, supostamen­te “brincadeir­as” de campanha, se chocaria com a ideologica­mente intangível, ou dúctil, sensibilid­ade da cultura brasileira.

E justo no momento em que escrevo, momentos antes de fechar o texto para o caderno deste domingo, impresso com antecedênc­ia, levo o choque da notícia: ainda há pouco alguém esfaqueou Bolsonaro em Juiz de Fora. Felizmente, as primeiras informaçõe­s dizem que não há gravidade; espero que sim, que Bolsonaro se recupere da barbárie deste ataque, que fere profundame­nte o país num de seus momentos históricos mais difíceis. E ele que retorne à campanha para o livre debate das ideias.

O meu tema era o fio da civilizaçã­o e a sua representa­ção ficcional; a minha torcida, com a esperança de que seja a de milhões de brasileiro­s, é que, a partir da estupidez do atentado, o país não regresse a alguma Tupinilând­ia real. O chamariz emocional da violência é o primeiro gatilho da barbárie. O país está fraturado demais para ultrapassa­r esta última linha.

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Vânia Medeiros

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