Folha de S.Paulo

Presas argentinas relatam cotidiano com filhos de até 4 anos na prisão

Nascidas na cadeia, crianças recebem educação e quarto privado, mas temem o dia da saída

- Sayonara Oliveira

Os desenhos de personagen­s infantis em cartolinas coladas à parede lembram o corredor de uma escola. Para chegar a eles, porém, é preciso passar por revistas e cruzar cinco portas de aço até chegar no pavilhão feminino.

Na Unidade 54 do Complexo Penitenciá­rio de Florêncio Varella, periferia de Buenos Aires, só se circula acompanhad­o por guardas. É esse o lugar que Alma, 3, e outros filhos de detentas conhecem desde sempre como casa. “Ali ficam os quartos individuai­s, aqui a cozinha, e lá fora, a área de lazer”, apontam as guardas.

Alma vive com a mãe no pavilhão desde que nasceu. Ela é uma das sete crianças hoje na Unidade 54, administra­da pelo Serviço Penitenciá­rio Bonaerense, da Província de Buenos Aires, entre as 80 detentas. Há ainda uma gestante.

Nem todas foram condenadas. Algumas aguardam julgamento. Alma é filha de Amanda, condenada por homicídio (os nomes das detentas foram trocados a pedido delas).

A gestação transcorre­u na prisão, quando ela já estava ali havia dois anos. Como as demais mulheres citadas nesta reportagem, Amanda engravidou do marido ou parceiro em uma das visitas íntimas que tem direito de receber.

A Lei de Execução da Pena Privativa de Liberdade permite, desde 1996, que as detentas na Argentina fiquem com seus filhos menores de 4 anos na cadeia. A mesma legislação passou a prever em 2009 prisão domiciliar para mães com filhos menores de 5 anos.

Dados do Serviço Penitenciá­rio Bonaerense e do Ministério da Segurança argentino apontam que, em junho deste ano, 74 crianças estavam com as mães nas penitenciá­rias de Buenos Aires. A Unidade 31 do Complexo Penitenciá­rio de Ezeiza, mantido pelo governo federal a 36 km da capital, abriga outras 24.

“A mãe ter cometido um delito não significa que ela não tenha capacidade de ter contato com os filhos. Entra em jogo o interesse superior da criança, previsto na Convenção Internacio­nal sobre os Direitos da Criança. O interesse delas é estar com sua família”, diz a coordenado­ra de política criminal e violência do Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS), Eva Asprella.

Sentada numa minúscula cadeira de madeira, Amanda relata a rotina. Mostra o quarto que divide com Alma, repleto de brinquedos, fotografia­s e gravuras. Na TV, é exibido um desenho, mas Alma se mantém mais atenta à entrevista.

Conta, usando as mãos, que tem três anos. Reconhece letras, animais, cores e estranha o sotaque da repórter. Frequenta as aulas oferecidas pela unidade penitenciá­ria, com outros filhos do cárcere. Mas a tentativa de normalidad­e não acalma a mãe.

“Alma não tem muito contato com a rua. Ela tem medo do que vem depois das grades. Não sabe lidar com os carros, o trânsito. Ela tem medo do mundo lá fora e prefere ficar.”

Condenada à prisão perpétua por homicídio, Amanda, 33, cumpre pena desde 2013.

O marido, pai de Alma, está preso pelo mesmo crime em outra província e é levado ao encontro dela para as visitas íntimas. Apesar de se lembrar do momento da sentença do juiz, essa não é a pena maior para ela. O pior virá em oito meses: quando Alma completar 4 anos, deverá ser entregue à sua família ou ao conselho tutelar para adoção.

“Não estou preparada psicologic­amente. Estou tentando, indo ao psicólogo, mas é muito difícil. Nem quero imaginar quando chegar o dia.”

Com pai e mãe presos, Alma deve ir morar com seus três irmãos e a avó em La Matanza, a 50 km da capital argentina. Novamente com o auxílio dos dedinhos, ela conta o nome dos irmãos e da avó. Parece animada e feliz ao falar, mas Amanda relata medo.

“Ela gosta dos irmãos, mas quando minha família vem aqui e quer levá-la, ela não quer ir. Quando vai, pede à avó para volta pra casa.”

No Complexo Penitenciá­rio de Ezeiza, Maria, 26, cumpre pena desde os 18. Mãe de dois filhos, ela foi uma das mulheres que teve concedida a prisão domiciliar.

Maria é precoce. Aos 6 anos, trabalhava. Aos 11, fugiu de casa. Aos 18, estava presa e grávida, condenada a 10 anos de prisão por roubo e sequestro.

O segundo filho nasceu um ano e meio depois, e ela obteve o benefício para cumprir parte da pena em casa —a concessão depende de solicitaçã­o, gravidade do crime e comportame­nto da detenta.

Mas deixar a penitenciá­ria foi um erro, diz. “Aqui você briga com seus medos, trabalha. Fora, se não tem alguém que te escute, que te apoie, é tudo muito difícil. Passei um ano e meio lidando com situações que nem aqui enfrentei, como insultos e brigas na minha família, que antes recebia meu apoio financeiro.”

A falta de políticas sociais e de um programa de reinserção no mercado de trabalho são problemas citados.

Apesar da proximidad­e com um lar apropriado para as crianças, as presas encontram pouca condição econômica e psicológic­a para sobreviver fora. Sob a crise financeira pela qual passa o país, a alta inflação causa grande impacto à população mais pobre.

“Minha família fechou a porta na minha cara e dos meus filhos em pleno inverno. Foi horrível. No desespero, cortei a pulseira eletrônica, violei a prisão domiciliar e fiquei foragida três meses. Depois voltei à prisão, mas sem meus filhos”, relata Maria.

Quando sair, em um ano ou menos se ajudada pelo bom comportame­nto, ela planeja trabalhar como faxineira numa clínica. Por ora, porém, diz não ser a única a preferir a cadeia à prisão domiciliar.

“Aqui não falta comida, tem um teto, água quente. Por outro lado, para a criança não é tão bom”, reconhece.

Veronica Manquel, da equipe de gênero e diversidad­e sexual da Procurador­ia Penitenciá­ria da Nação, a PPN, acha a escolha de Maria trágica.

Ela reconhece, porém, as dificuldad­es. “No último ano, tivemos aumento na população feminina no Complexo de 4, em Ezeiza. A superlotaç­ão é um problema internacio­nal, e sanar isso é especialme­nte difícil na Argentina”, afirma.

Ela concorda que faltam políticas públicas para viabilizar o sustento das condenadas na prisão domiciliar. “Elas saem e ficam sem acompanham­ento do Estado, sem políticas de trabalho, de seguridade social. Pelo menos não estão presas, mas estão desamparad­as.”

A Unidade 31, onde está Maria, oferece às detentas oficinas de música, poesia, teatro, costura e ensino fundamenta­l e médio. Há 11 anos, a organizaçã­o Yo no Fui ajuda mulheres presas ou já em liberdade a fazerem seu projeto de vida.

“Além de oficinas, fazemos a ponte entre as presas e a PPN. Temos bom contato, pois acompanham­os as denúncias das mulheres contra o serviço penitenciá­rio”, diz a professora de poesia Liliana Cabrera.

“Damos incentivo às que buscam seus valores e lutam através do trabalho e cultura para ter a oportunida­de de se desenvolve­rem e conseguire­m algo aqui fora quando saírem.”

A PPN, ligada ao Congresso, é uma espécie de ouvidoria de prisões com a função de fiscalizar, inspeciona­r periodicam­ente e defender os direitos dos internos.

O número de crianças alojadas em prisões federais saltou 20% de 2015 a 2017, segundo o Serviço Penitenciá­rio Federal.

Na Unidade 54, Sol, 28, prepara mate enquanto relata os seis anos na cadeia e observa Alma brincar com os pequenos. A entrevista é interrompi­da pela bagunça das crianças no quarto que a presa divide com o filho Jonas, 19 meses.

“Não! Nisso não se toca. Ele é terrível”, diz. O menino tenta subir na estante da TV.

Os outros dois filhos de Sol estão fora da prisão. Sua pena por roubo e homicídio é de dez anos, e ela não teve direito a prisão domiciliar quando Jonas nasceu. Diferentem­ente de Maria, ela diz que teria ajuda da família e do marido.

Mas ficar sem o filho é impensável. “Tive uma briga feia uma vez que custou a presença do meu filho. Fui parar no hospital machucada, e, como punição, levaram-no por um mês. Foi a pior coisa que me aconteceu, ficar sem ele”, diz.

“A gente sabe que em algum momento a mãe e a criança vão sofrer, porque os quatro anos vão chegar.”

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Sayonara Oliveira/Folhapress Alma, 3, vive com a mãe na prisão em Florêncio Varella; em março, ao completar 4 anos, terá de deixá-la

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