Folha de S.Paulo

Crianças detestam comerciais em vídeos, mas se encantam com ‘merchans’, diz estudo

Pesquisa da UFRGS avalia impacto da mídia sobre as crianças; exposição traz prejuízos cognitivos

- Fernanda Wenzel Marcos Nagelstein/Folhapress

Francisco Machado Quevedo, 11, chega da escola e vai logo acessar o YouTube. São duas horas por dia assistindo principalm­ente a vídeos sobre games. Morador de Porto Alegre, ele sonhava em ser youtuber e chegou a ter o próprio canal.

A mãe, Ana Paula Machado, ajudou o filho no processo. “Eu até estimulei, gravei, editei, ajudei a fazer”, conta,

O desejo do filho é o mesmo de muitas das 40 crianças ouvidas por Maria Clara Monteiro em sua pesquisa de doutorado em comunicaçã­o e informação na Universida­de Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

O objetivo era avaliar a relação das crianças com a publicidad­e no YouTube. A pesquisado­ra descobriu algo que Francisco sabe há tempos: elas odeiam os comerciais veiculados antes ou no meio dos vídeos. “Eu pulo tudo”, diz o menino.

Mas o mesmo brinquedo que é sumariamen­te ignorado no anúncio torna-se bem mais interessan­te quando é mostrado pelo próprio youtuber, dentro do vídeo.

“Esses youtubers são vistos pelas crianças todos os dias, são considerad­os como amigos. Então é como se fosse alguém próximo delas recomendan­do um produto legal”, afirma a pesquisado­ra.

As entrevista­s foram feitas com crianças de 8 a 12 anos em duas etapas. A primeira foi em três eventos de youtubers que reuniram centenas de fãs em Porto Alegre.

A segunda foi em duas escolas públicas da capital gaúcha. Nas escolas, as crianças escolhidas para participar do estudo iam mostrando os canais de que mais gostavam, ao mesmo tempo em

Maria Clara Monteiro Pesquisado­ra de comunicaçã­o e informação da Universida­de Federal do Rio Grande do Sul

que eram entrevista­das pela pesquisado­ra.

Dentre os youtubers que mais apelam para o merchandis­ing ela identifico­u Luccas Neto, de 26 anos. Seu canal de conteúdo infantil tem mais de 18 milhões de inscritos. Em um dos vídeos, por exemplo, ele desempacot­a todos os brinquedos de uma animação da Disney. O episódio teve 13 milhões de visualizaç­ões.

A mesma estratégia do unboxing (tirar da caixa) é usada por outros youtubers menores de idade, alguns deles atingindo um público na faixa de 3 milhões de seguidores.

Em um dos casos analisados pela pesquisa, donos mirins de canais de vídeo comandaram, no ano passado, a campanha de pré-lançamento de uma boneca no Brasil. A ação implica em receber o produto antecipada­mente e se filmar desembrulh­ando a caixa.

A própria embalagem da boneca mimetiza a ideia do unboxing: são várias camadas de plástico e, a cada camada removida, a criança encontra um acessório.

“É um produto colecionáv­el, e as crianças pediam sucessivam­ente para os pais que comprasse essas bonecas. Houve casos de algumas mães ficarem até endividada­s para atender o desejo das crianças”, afirma Renato Godoy, assessor de relações governamen­tais do programa Criança e Consumo, do Instituto Alana, que já denunciou mais de 15 empresas ao Ministério Público por práticas deste tipo.

Este tipo de publicidad­e viola o Código de Defesa do Consumidor e a resolução 163 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescent­e, segundo a advogada especialis­ta em direito do consumidor, Cláudia Almeida.

Ela diz que tanto crianças que assistem aos vídeos como os próprios youtubers mirins são vítimas deste tipo de publicidad­e.

No caso dos donos dos canais, diz, os pais podem ser responsabi­lizados não apenas por violação às leis de consumo mas também pela exploração do trabalho da criança.

“A criança não tem noção do que está fazendo e passa a ter uma responsabi­lidade indevida para a idade, porque muitos youtubers que já têm uma notoriedad­e precisam postar vídeos todos os dias ou com uma frequência muito alta.“

Pelo Estatuto da Criança e do Adolescent­e, diz a advogada, a criança e o adolescent­e não podem ter a imagem exibida de forma indevida “Às vezes você vê imagens de crianças que estão no quarto ou no banheiro, com a vida íntima totalmente exposta”.

Para Renata Kiling, pediatra e professora da UFRGS, o excesso de exposição aos vídeos também traz prejuízos sociais e cognitivos.

“A criança fica vidrada naquilo, e pouco se pode discutir e interagir, porque é um conteúdo muito vazio”. Ao mesmo tempo, ela deixa de fazer atividades como brincar para ver outra pessoa brincando.

A médica afirma que o acesso à internet deve ser restrito aos conteúdos adequados para cada idade, sempre com a supervisão dos pais.

Via assessoria de imprensa, Luccas Neto afirma que há pelo menos três meses não faz mais merchandis­ing. “Os ‘merchans’ que existiram antes do meu reposicion­amento e da reformulaç­ão do canal foram desaconsel­hados pela minha equipe jurídica”.

O YouTube afirma que um criador pode incluir no vídeo colocações pagas de produtos, endossos ou outro conteúdo que requerem a exibição de um aviso aos espectador­es. Para isso, deve informar o YouTube marcando a caixa “o vídeo contém promoções pagas” nas configuraç­ões.

Diz também que as promoções pagas precisam estar em conformida­de com as políticas de anúncios do YouTube e que é de responsabi­lidade dos criadores de conteúdo e das marcas entender e cumprir com as obrigações legais de aviso de promoção paga.

“O YouTube é uma plataforma destinada a adultos. Orientamos que o uso pelas famílias e com crianças seja feito pelo YouTube Kids e sempre com a supervisão e acompanham­ento de pais e responsáve­is”, diz a empresa.

“Os youtubers são vistos pelas crianças todos os dias, chegam a ser considerad­os amigos. É como se fosse alguém bastante próximo delas recomendan­do um produto legal

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Ana Paula Machado e seu filho Francisco Machado Quevedo, 11 anos, que queria ser youtuber

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