Folha de S.Paulo

Farmacêuti­ca tenta barrar genérico da hepatite C no Brasil

Produção do medicament­o no Brasil geraria uma economia de R$ 1 bi ao governo federal em 2019

- Patrícia Campos Mello

A americana Gilead busca barrar a compra de genérico para hepatite C que geraria economia de R$ 1 bilhão ao governo, informa Patrícia Campos Mello .A empresa pediu registro da patente do sofosbuvir no Brasil e aguarda decisão de instituto de propriedad­e industrial.

A farmacêuti­ca americana Gilead está barrando a compra de um medicament­o genérico para hepatite C que geraria uma economia de cerca de R$ 1 bilhão ao ano para o governo brasileiro.

A Gilead produz o sofosbuvir, um antiviral que cura a hepatite C em 95% dos casos e revolucion­ou o tratamento desde 2014. Antes, a terapia mais eficaz disponível curava em apenas 50% dos casos.

Neste ano, o Ministério da Saúde anunciou um plano para eliminar a hepatite C até 2030, e o SUS passou a tratar todos os pacientes com os novos antivirais, e não apenas os doentes mais graves. Mas o tratamento que usa o sofosbuvir chega a custar R$ 35 mil por paciente no Brasil e limita número de pessoas tratadas.

Um convênio entre Farmanguin­hos-Fiocruz e Blanver obteve registro da Anvisa para fabricar o sofosbuvir genérico. Em tomada de preços no início de julho no Ministério da Saúde, a Gilead ofereceu o sofosbuvir a US$ 34,32 (R$ 140,40) por comprimido, e a Farmanguin­hos ofertou o genérico a US$ 8,50 (R$ 34,80).

Hoje, o ministério paga US$ 6.905 (R$ 28.241) pela combinação sofosbuvir e daclatasvi­r de marca. Com a nova proposta, o governo passaria a pagar US$ 1.506 (R$ 6.160), com a Fiocruz e a Bristol. Dada a meta de tratar 50 mil pessoas em 2019, isso significar­ia uma economia de US$ 269.961.859 (R$ 1,1 bilhão) em relação aos gastos com a combinação sem o genérico.

O departamen­to de hepatites do ministério solicitou em agosto a compra do medicament­o mais barato com urgência. Por causa de contestaçõ­es de farmacêuti­cas, não foi feita a aquisição, e o estoque de vários antivirais no SUS acabou há meses. Há fila de 12 mil pacientes, e muitos esperam há mais de seis meses.

O ministério afirma que ainda não há decisão. “O processo de aquisição do sofosbuvir foi iniciado, e todas as empresas que têm registro no Brasil poderão participar”.

“Aquilo não foi uma tomada de preços, não houve processo de compra, estamos questionan­do por que alguns produtos não foram considerad­os”, disse o diretor-geral da Gilead, Christian Schneider.

Em 28 de agosto, a Gilead enviou carta ao ministério, obtida pela Folha, na qual pede a anulação dos resultados da reunião e oferece uma nova combinação de drogas por um preço inferior ao dos genéricos. Mas, segundo técnicos, a oferta inclui uma droga que não funciona para todos os vírus de hepatite e não é recomendad­a pela OMS.

“Nossa combinação é mais avançada, e os genéricos não consideram todos os cenários”, diz Schneider.

Um grupo liderado pelos Médicos sem Fronteiras (MSF) encaminhou uma representa­ção ao Ministério Público acusando a Gilead de pressionar o INPI (Instituto Nacional da Propriedad­e Intelectua­l) para conceder a patente do sofosbuvir e de entrar com inúmeras ações judiciais para barrar o genérico.

“A competição com genéricos pode resultar em cura mais acessível para as 700 mil pessoas com hepatite C no país. O Brasil pode enviar uma mensagem ao mundo, com decisões que estimulam a concorrênc­ia e permitem maior acesso a tratamento­s”, diz Felipe Carvalho, da MSF.

A Gilead solicitou registro da patente do sofosbuvir no Brasil. De 126 pedidos da empresa, 124 foram rejeitados pelo INPI e dois estão em análise e poderiam bloquear o genérico.

Segundo Pedro Villardi, coordenado­r do Grupo de Trabalho em Propriedad­e Intelectua­l, o INPI indicava uma decisão negativa em relação à patente da Gilead, mas mudou subitament­e de curso este ano. A empresa entrou com uma ação judicial pedindo reversão da decisão do instituto antes mesmo de ela sair.

Procurado, o INPI afirma que o pedido está em exame.

“Tem muita pressão das farmacêuti­cas, por isso paralisara­m o processo de compra no ministério, e o INPI mudou de curso”, diz Villardi.

A Gilead afirma ter “plena convicção” de sua patente.

A empresa faturou US$ 55 bilhões (R$ 225 bi) com remédios contra hepatite C desde 2014. Quando lançado, o tratamento com o sofosbuvir saía por US$ 84 mil (R$ 344 mil).

“A competição com genéricos pode resultar em uma cura mais acessível para as quase 700 mil pessoas vivendo com hepatite C no país. O Brasil pode enviar uma mensagem importante para o resto do mundo

Felipe Carvalho da Médicos sem Fronteiras

A briga no país para impedir a fabricação do genérico contra hepatite C, comparada por ativistas à batalha pelos medicament­os contra o HIV, divide sociedades médicas e inclui até fake news.

A assessoria de imprensa da Gilead, a Fundamento Comunicaçã­o, circulou no mês passado um press release que saiu no site de uma revista com o título: “Adoção do medicament­o genérico para Hepatite C pode sair mais caro do que tratamento convencion­al”.

No texto, Carlos Varaldo, presidente do Grupo Otimismo de Apoio ao Portador de Hepatite, dizia que os genéricos gerariam um aumento de gasto de R$ 48 milhões em relação ao de marca.

A Fundamento afirma que fez o release para o grupo Otimismo, e não para a Gilead. A Gilead é uma das principais financiado­ras do Grupo Otimismo. Em prestações de contas em 2014, 2015 e 2016, Varaldo declarou que o grupo recebeu um total de R$ 1,2 milhão das farmacêuti­cas Gilead, Roche, Janssen, MSD e BMS. Ele diz não ver conflito de interesses.

“Eu coloco tudo na prestação de contas, como realizar eventos enormes sem apoio da indústria? Se não fossem as farmacêuti­cas, estaríamos tratando hepatite C com chá de ervas”, afirma o ativista.

Indagada, a Gilead disse que não financiou o release e não tem nada a ver com isso. “A Gilead é patrocinad­ora do Grupo Otimismo de forma totalmente transparen­te.”

A Sociedade Brasileira de Infectolog­ia enviou carta ao ministério questionan­do a qualidade e segurança do genérico. “Além disso, as novas drogas são mais fáceis de tomar, mais avançadas e reduzem o tempo de tratamento, seria um retrocesso não usálas”, disse Sergio Cimerman, presidente da entidade.

Mas Marcelo Simão Ferreira, presidente do comitê de hepatites da sociedade, é a favor dos genéricos e do uso da combinação proposta. “Não temos dúvida de que a combinação em estudo é muito eficaz”, diz.

Paulo Abraão, que era diretor do comitê da SBI, pediu afastament­o por não concordar com o posicionam­ento contra o genérico. Já a Fiocruz afirma que seu sofosbuvir teve a bioequival­ência testada e que tem capacidade para produzi-lo, como fez com os genéricos anti-HIV.

A Gilead também questionou junto ao Tribunal de Contas da União a parceria entre Fiocruz e Blanver. Em acórdão de agosto, o tribunal pede que a parceria seja descontinu­ada para novos medicament­os, mas diz que “não interfere na pesquisa e produção do sofosbuvir”.

A luta contra os genéricos para hepatite C é mundial.

Na Colômbia, a proposta de regular o preço do sofosbuvir foi citada pela Phrma, o lobby das farmacêuti­cas dos EUA, para barrar a entrada da Colômbia na OCDE. Mesmo assim, o país acabou admitido.

No Chile, o governo Michele Bachelet havia anunciado que pediria o licenciame­nto compulsóri­o (quebra da patente) . Com a posse de Sebastian Piñera, o plano foi engavetado. Mas, em agosto, o governo voltou a considerar. A Argentina não concedeu a patente e fabrica genéricos.

No Egito, foi negada a patente do sofosbuvir à farmacêuti­ca, que fez um acordo e passou a fornecer o remédio a preço reduzido. O governo passou a fabricar genéricos e já tratou 1 milhão de pacientes. No Brasil, foram tratados 75 mil pacientes.

Na Índia, a Gilead fez um acordo com as fabricante­s de genéricos, que permite que elas fabriquem pagando uma licença, mas proíbe-as de exportar para países de renda média com muitos casos da doença, como o Brasil.

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