Folha de S.Paulo

Ceticismo seletivo

- Pablo Ortellado Professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia. Escreve às terças

Como todo episódio político quente, o atentado contra Bolsonaro também gerou interpreta­ções divididas. Na esquerda, difundiram-se aquelas que diziam que o atentado não tinha acontecido ou que não tinha a gravidade anunciada.

Levantamen­to da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da FGV, na manhã do dia 7 de setembro, mostrou que surpreende­ntes 40,5% das interações no Twitter sobre o atentado encampavam essa tese.

Embora seja mais ou menos esperado algum nível de desinforma­ção nos primeiros momentos de um evento surpreende­nte como esse, as especulaçõ­es mais selvagens continuara­m difundindo-se até três dias depois do ataque.

Sites da imprensa alternativ­a de esquerda, perfis de grandes influencia­dores e correntes de WhatsApp encadearam uma longa lista de fatos e suspeitas.

Entre elas estavam a visita de Bolsonaro a João Roberto Marinho; o fato de ele estar cercado de seguranças e policiais bem treinados; o fato de a facada ter atravessad­o um colete à prova de balas; o fato de não ter jorrado sangue após o golpe; as informaçõe­s desencontr­adas sobre o seu estado de saúde; o fato de os médicos aparecerem numa foto sem luvas; e, finalmente, o suposto tratamento benevolent­e que seu vice, general Mourão, teria recebido em entrevista na Globonews.

Embora o ataque tenha sido presenciad­o e relatado por inúmeros jornalista­s, de diferentes veículos, sucessivos laudos médicos tenham mostrado a gravidade dos ferimentos e todas as forças adversária­s tenham reconhecid­o e lamentado o atentado, uma grande quantidade de céticos seguiu acreditand­o numa conspiraçã­o para martirizar Bolsonaro, culpar a esquerda pelo ataque e facilitar a vitória do candidato ainda no primeiro turno.

Foram lembradas a explosão do Riocentro, a omissão do comício das diretas na cobertura da Globo em 1984 e o incêndio do Reichstag.

O episódio merece análise porque ilustra um fenômeno mais amplo: o ceticismo seletivo associado à credulidad­e inocente, uma forma muito extrema de viés de confirmaçã­o. É um fenômeno no qual se duvida de fatos bem estabeleci­dos, ao mesmo tempo em que se suspende qualquer juízo crítico para aderir a teses muito frágeis.

Vemos, por exemplo, condenaçõe­s do viés editorial da grande imprensa acompanhad­as da aceitação acrítica das notícias falsas mais tolas; vemos críticas aos partidos por serem incapazes de representa­r a cidadania acompanhad­as da adesão a projetos políticos flagrantem­ente autoritári­os.

Trata-se de uma seletivida­de extrema pela qual se adota para aquilo que se condena uma postura hipercríti­ca e hipercétic­a e para tudo aquilo que se defende uma credulidad­e ingênua.

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