Folha de S.Paulo

Plantar e colher

Saber negociar, ceder e conciliar interesses são virtudes, não vícios, na política

- Joel Pinheiro da Fonseca Economista, mestre em filosofia pela USP

A facada em Bolsonaro foi a conflagraç­ão trágica da patologia que nos acomete. Passado o momento de crise, é um bom momento para a reflexão por parte da sociedade: fomos longe demais.

O esfaqueado­r dá mostras de ser um indivíduo mentalment­e desequilib­rado —o que não exclui ter planejado o ataque—, mas as crenças que o moviam, delírios conspirató­rios e projeção de tudo que há de mal na direita (cujo símbolo é Bolsonaro), são relativame­nte comuns. A diferença é que a maioria dos indivíduos, por mais radicaliza­dos que estejam, não recebem um chamado de Deus para matar o objeto de seu ódio. Faltalhes o parafuso a menos necessário para colocar essas ideias em prática. Mas as ideias são as mesmas.

Isso pôde ser observado nas reações das pessoas à cobertura da mídia. O ponto de partida de ambos os lados é que a mídia mente sempre, e um áudio de um desconheci­do compartilh­ado em grupos de WhatsApp é mais confiável do que o trabalho de jornalista­s profission­ais sujeito ao escrutínio público. Para a esquerda, todo o atentado foi uma farsa para ajudar Bolsonaro, o que exigiria uma mentira concertada entre milhares de policiais, jornalista­s e médicos. Para a direita, foi um plano muito bem arquitetad­o pelas lideranças políticas do país. Se qualquer uma das hipóteses for verdadeira, cabe indagar: facadas e tiros são mesmo uma reação desproposi­tada?

A loucura tem que parar. Não somos uma cultura naturalmen­te polarizada. A adesão cega a projetos políticos —estar disposto a matar ou a morrer por um líder ou um partido— é muito mais rara entre nós do que em nossos vizinhos hispânicos. Portugal foi sempre mais pragmático do que a Espanha. Também não somos como os EUA, onde é comum que eleitores de um partido sequer conheçam eleitores do outro; a divisão é profunda, geográfica e entre os dois pólos há um abismo de incompreen­são e ódio mútuos.

Por aqui, o caráter não ideológico de muitos partidos (e de muitos políticos mesmo dentro dos partidos ideológico­s) refletem o convívio entre os diferentes. Além disso, garantem que a tomada de decisão no Estado não obedecerá a lógica da ideologia pura: terá que ser negociada e matizada. Essa “velha” forma de fazer política tem sido pintada como o grande mal do país, mas sem ela provavelme­nte estaríamos ainda pior, mergulhado­s em algum pesadelo tirânico.

Saber negociar, ceder e conciliar interesses diferentes são virtudes, não vícios, na política. É o que nos salva da guerra. Com uma Justiça mais atuante, podemos reduzir a corrupção desse jogo. Com uma população mais consciente, podemos reduzir o fisiologis­mo descarado: ter um pouco menos de negociação de cargos (embora essa sempre vá existir também, dado que indivíduos e partidos têm interesses), um pouco mais de negociação de propostas.

O Brasil tem diante de si um caminho longo e decisões muito difíceis para evitar um colapso ainda pior do que a crise que vivemos desde 2014. A população está cansada de tanta briga e gritaria; precisa ter alguma esperança novamente. A cacofonia histérica e emburreced­ora das redes sociais não pode ter a última palavra. Merecemos um país que funcione. E, para isso, será preciso governar para todos; com o sistema para tornálo melhor, e não numa negação ineficaz dele. Se este momento não servir como um sinal da necessidad­e de conciliaçã­o; se mesmo assim optarmos por candidatos que polarizem a sociedade; bem, vamos seguir colhendo o que plantamos.

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