Folha de S.Paulo

Dez anos após Grande Recessão, EUA enfrentam economia quente demais

Origem da crise global de 2008, preços de imóveis perdem força e indicam sinais de problemas

- Fernando Canzian Fotos Fernando Canzian/Folhapress

flórida e nova jersey À beiramar no sudoeste da Flórida, Sarasota é considerad­a o epicentro da crise global que levou, há dez anos, à maior quebra corporativ­a dos EUA: a falência do banco Lehman Brothers, em Nova York, em 15 de setembro de 2008.

No final de 2007, Sarasota e cidades vizinhas como St. Petersburg e Tampa experiment­aram uma queda abrupta nos preços dos imóveis, desencadea­ndo uma onda que se propagaria primeiro pelos EUA e, depois, pelo resto do mundo.

O movimento culminaria no que hoje se convencion­ou chamar de Grande Recessão, a maior crise global desde a Grande Depressão que se seguiu ao “crash” da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929.

Em 2010 e 2011, com os preços dos imóveis despencand­o nos EUA, Dave Lantz teve a ideia de reunir grandes somas de familiares e empréstimo­s para comprar casas nos EUA.

Hoje, ele administra 2.000 imóveis, vários deles em Sarasota, onde Lantz caminhava despreocup­ado há duas semanas em direção ao bar de um píer repleto de iates.

Nesse mesmo bar, Terri O’Sullivan servia jarras de cerveja e representa­va o “outro lado” dessa história.

Durante a chamada “bolha imobiliári­a” que se formou antes da quebra do Lehman Brothers, os bancos forneciam financiame­ntos, sem pedir muitas garantias, a quem quisesse comprar uma casa.

Então em Kansas City, no Missouri, Terri foi uma das milhões de pessoas que tomaram esse tipo de empréstimo, chamado “subprime”.

Na época, os bancos concediam cada vez mais financiame­ntos, e os preços dos imóveis não paravam de subir. E eles não paravam de subir porque os bancos emprestava­m sem parar —inflando a demanda por casas com financiame­ntos baratos e reduzindo o estoque de moradias.

Depois de conceder os empréstimo­s, os bancos “empacotava­m” as dívidas de seus mutuários em produtos financeiro­s obscuros e de nomes sofisticad­os. E os vendiam ao redor do mundo tendo como “garantia” selos de qualidade inócuos de agências de classifica­ção de riscos.

Mas a garantia e a remuneraçã­o desses produtos dependiam de os mutuários continuare­m pagando as prestações e, em grande medida, de os imóveis seguirem em alta.

Muitos compraram três ou quatro imóveis na expectativ­a de valorizaçã­o eterna, em muitos casos com planos de revender ou alugar para pagar as prestações.

Quando ficou claro que os preços não subiriam para sempre e os bancos cortaram novos financiame­ntos, os mutuários começaram a se desfazer de suas casas.

Os preços desabaram. E aqueles títulos com nomes sofisticad­os passaram a perder valor imediatame­nte.

Terri, por exemplo, perdeu sua casa e colocou lenha na crise depois que seu imóvel, financiado por US$ 375 mil, desvaloriz­ou-se a ponto de ela ser obrigada a vendê-lo por US$ 275 mil. Ela deixou de pagar prestações de US$ 1.800 e de remunerar os títulos que seu empréstimo garantiam.

Recheados com montanhas de papéis lastreados em financiame­ntos inadimplen­tes, os balanços dos bancos registrara­m prejuízos gigantesco­s.

Enquanto alguns quebravam, como o Lehman Bro- thers, quase todos pararam de emprestar dinheiro a empresas e consumidor­es, jogando os EUA primeiro, e depois o mundo, na espiral da crise.

Na recessão, o PIB dos EUA encolheria -0,3% em 2008 e -2,8% em 2009, o desemprego iria a 10% com a demissão de 9 milhões de pessoas e mais de 6,3 milhões de famílias, segundo estimativa­s conservado­ras, seriam despejadas.

Na época, Terri perdeu seu imóvel e cerca de US$ 100 mil que tinha dado como entrada e em prestações já quitadas. Casas como a sua foram as que Dave Lantz comprou na baixa. E que hoje, após a recuperaçã­o na última década, voltaram a valer mais do que antes do início da crise. Agora há, no entanto, uma diminuição no ritmo de valorizaçã­o. O fato tem levado à pergunta: os Estados Unidos não estariam formando as condições para uma nova crise?

Maior economia do mundo com um PIB de US$ 20 trilhões, os EUA acabam de completar 110 meses de expansão econômica, o segundo maior ciclo em 164 anos, de acordo com o NBER (Escritório Nacional de Pesquisa Econômica, na sigla em inglês). Normalment­e, esses ciclos duram menos de 40 meses, em média.

Embora os EUA e a maioria dos países desenvolvi­dos tenham deixado a Grande Recessão para trás, o motivo na raiz da crise segue presente: famílias, empresas, governos e bancos continuam altamente endividado­s, fato que motivou o colapso há dez anos.

Na prática, com a exceção dos bancos, submetidos a nova regulament­ação após a crise, o endividame­nto global em dólares é superior ao do nível anterior a 2008 (ver quadro).

Após o estouro da crise e para salvar bancos e empresas do destino do Lehman Brothers, o Fed (banco central dos EUA) e o BCE (Banco Central Europeu) promoveram cortes agressivos em suas taxas de juros e adquiriram trilhões de dólares em títulos de empresas e governos para injetar liquidez na economia como um todo.

No caso dos governos, houve um aumento, em dólares, de 81% no endividame­nto global. Como proporção do PIB mundial, as dívidas estatais passaram de 64% para 84%.

Nas empresas não financeira­s, a alta em dólares foi de 61% —e de 79% para 92,5% como proporção do PIB global.

Ao constatar um mundo “mais afundado em dívidas do que há dez anos”, o FMI (Fundo Monetário Internacio­nal) alertou há algumas semanas para dois riscos principais:

1) O alto endividame­nto pode dificultar a rolagem dos débitos e obrigar os governos a pagar mais juros, agravando o quadro e; 2) Em uma nova crise ou recessão mais forte, os governos, já muito endividado­s, não teriam tanto espaço para socorrer empresas, bancos e famílias.

Nos EUA, há sinais de que o atual ciclo de expansão pode estar perto do fim, como o elevado endividame­nto das empresas e a taxa de desemprego, extremante baixa.

Isso já pressiona salários e a inflação, o que deve levar o banco central americano a subir mais os juros nos próximos meses, esfriando a economia.

Os recentes estímulos fiscais, com cortes de impostos de empresas e aumento do gasto público adotados pelo governo Donald Trump, também são vistos como ameaça.

O estímulo, declarou recentemen­te Ben Bernanke, à frente do Fed durante a Grande Recessão, “não podia ter chegado em momento mais equivocado, quando a economia está aquecida e vivendo uma situação de pleno emprego”.

Em dez anos, os cortes de impostos e mais gastos poderão aumentar o déficit do país em US$ 1,6 trilhão.

Antes disso, o esperado é que o Fed seja obrigado a subir mais os juros para segurar a inflação e financiar um déficit público crescente.

Para as milhões de pessoas que perderam seus empregos e casas há dez anos, um novo esfriament­o da economia dificilmen­te terá a dimensão do drama da Grande Recessão.

Mas empresas e famílias poderão ser diretament­e afetadas pela alta dos juros, o que tornará ainda maior seu endividame­nto e diminuirá o espaço para pagar dívidas —que seguem em volume crescente.

Embora os bancos tenham sido obrigados a aumentar o rigor nos financiame­ntos imobiliári­os depois da crise, também é comum agora nos EUA tomar empréstimo­s pessoais (o chamado “hard money”) para completar investimen­tos em imóveis.

“A farra pré-2008, quando bastava o cara respirar para ter crédito imobiliári­o, acabou”, diz Mario Damião, corretor brasileiro de Nova Jersey. “Mas o mercado segue firme.”

Na crise, Damião e sua colega Rosmena Desa, sócia de uma franquia da imobiliári­a Remax, tiveram de declarar falência pessoal de cerca de US$ 5 milhões cada.

Ambos preservara­m apenas as casas onde moravam, cujos financiame­ntos foram alongados de 30 para 40 anos para que pudessem pagar.

Pouco antes do início da Grande Recessão, Rosmena havia comprado, por US$ 320 mil, dois terrenos em Nova Jersey para construir duas casas, que esperava vender por US$ 500 mil cada uma.

Quando veio o baque e ela ficou sem caixa, se desfez do terreno por menos de US$ 130 mil. “Não tinha saída”, diz.

Há duas semanas, após receber a Folha, Rosmena pegaria as chaves de um novo imóvel que compraria naquele mesmo dia por US$ 130 mil, com 80% do valor financiado.

O plano? Reformá-lo com US$ 40 mil e tentar vendê-lo por US$ 210 mil em 90 dias.

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 ??  ?? 1 No One, que será o edifício mais alto de St. Petersburg (Flórida), os 253 apartament­os custam entre US$ 780 mil e US$ 3,8 milhões2 Terri O’Sullivan perdeu a casa e US$ 100 mil na crise 3 Os corretores brasileiro­s Rosmena Desa e Mario Damião, de Nova Jersey, que decretaram falência pessoal de US$ 5 milhões cada um 4 Dave Lantz, que reuniu dinheiro da família e empréstimo­s para comprar 2.000 imóveis na crise
1 No One, que será o edifício mais alto de St. Petersburg (Flórida), os 253 apartament­os custam entre US$ 780 mil e US$ 3,8 milhões2 Terri O’Sullivan perdeu a casa e US$ 100 mil na crise 3 Os corretores brasileiro­s Rosmena Desa e Mario Damião, de Nova Jersey, que decretaram falência pessoal de US$ 5 milhões cada um 4 Dave Lantz, que reuniu dinheiro da família e empréstimo­s para comprar 2.000 imóveis na crise
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