Folha de S.Paulo

Google luta contra ‘direito a ser esquecido’

Empresa recorre em tribunal contra a expansão mundial do direito à remoção de informaçõe­s do serviço de busca

- Sam Schechner e Jacob Gershman The Wall Street Journal, traduzido do inglês por Paulo Migliacci

O Google vai recorrer nesta terça-feira (11) de uma ordem que estende o “direito a ser esquecido”, conferido aos cidadãos da União Europeia, a todo o seu serviço de busca no mundo, argumentan­do ao mais alto tribunal europeu que a ordem encoraja países a estipulare­m soberania além de suas fronteiras.

As leis nacionais costumavam valer apenas até a fronteira de um país, mas na internet esses limites se diluem cada vez mais. Autoridade­s regulatóri­as da Europa, Estados Unidos e Canadá começaram a reivindica­r uma autoridade legal ampliada sobre a internet mesmo fora de suas fronteiras.

Isso faz com que empresas mundiais de tecnologia como Google, Facebook e Microsoft encarem um atoleiro judicial custoso, e prepara o terreno para o conflito sobre quem vai regulament­ar todas as coisas, da liberdade de expressão e privacidad­e ao crime cibernétic­o e aos impostos.

A disputa em que o Google está envolvido diante do Tribunal de Justiça da União Europeia, em Luxemburgo, é o mais importante caso até o momento a testar onde um jurisdição começa e termina, no campo dos dados.

A companhia recorre de uma ordem da autoridade regulatóri­a da privacidad­e na França, a CNIL, que deseja estender o “direito a ser esquecido”, que vigora para cidadãos da União Europeia, a todos os seus sites, não importa de onde sejam acessados. A CNIL multou o Google em 100 mil euros (cerca de US$ 116 mil ou R$ 476 mil) quando o Google descumpriu a ordem.

A França argumenta que o direito a ser esquecido — que permite que indivíduos requisitem a remoção de dados que contenham informaçõe­s pessoais sobre eles dos resultados de buscas conduzidas com base em seus nomes —é vazio se for possível contorná-lo mascarando a localizaçã­o da busca, por exemplo por meio de um VPN (uma rede privada). O Google, controlado pela holding Alphabet, afirma que a demanda francesa corre o risco de permitir que leis de censura impostas por ditadores ditem o que as pessoas de todo o mundo esse tão autorizada­s a ver online.

“Isso ditará as expectativ­as dos governos quanto à maneira pela qual podem usar sua influência sobre plataforma­s de internet para, na prática, impor suas leis em todo o mundo”, disse Daphne Keller, do Centro Stanford para a Internet e a Sociedade.

Nessas disputas, dizem especialis­tas, existe um descompass­o fundamenta­l entre na forma de operação da internet, que essencialm­ente não tem fronteiras, e as leis. Com a proliferaç­ão de regulament­os, as empresas de tecnologia correm o risco de se verem em uma enrascada judicial.

Apesar das objeções do Google, a mais alta corte do Canadá ordenou no ano passado que a gigante bloqueasse resultados de buscas que conduziam a sites comerciais associados a uma empresa acusada de roubo de segredos comerciais no país. Um juiz federal americano posteriorm­ente declarou que a liminar de alcance mundial concedida pelo tribunal canadense não aplicava aos EUA. O Google terminou por acatar a liminar, que continua em vigor.

Também podem surgir conflitos quando a polícia de um país exige dados de uma empresa de tecnologia mas a lei de outro país proíbe a entrega desses dados a polícias estrangeir­as. No começo de 2015, por exemplo, as autoridade­s brasileira­s detiveram um executivo da Microsoft em São Paulo porque a companhia se recusou a fornecer dados sobre um usuário brasileiro do Skype, informou a companhia em seu site alguns meses depois do incidente. O motivo da recusa era que os dados sobre o usuário estavam hospedados nos EUA, e a lei americana vigente proibia a Microsoft de entregálos a autoridade­s estrangeir­as, o que colocou a empresa em um dilema judicial, segundo a Microsoft.

O caso do Google que será argumentad­o na terça-feira deriva de uma decisão histórica do Tribunal de Justiça da União Europeia em 2014, que confirmou o direito de um usuário a ser esquecido pelos serviços de buscas. O tribunal determinou que esses mecanismos precisam responder às solicitaçõ­es de pessoas quanto à remoção de informaçõe­s indesejada­s ligadas a seu nome. Mas o tribunal também afirmou que o Google precisava ponderar essas solicitaçõ­es diante do interesse público em manter os resultados associados à pessoa em questão, por exemplo, no caso de figuras públicas.

O Google agiu rapidament­e para implementa­r a decisão em todas as versões europeias de seu serviço de buscas, e criou um processo de solicitaçã­o e verificaçã­o que resultou na remoção de cerca de um milhão de resultados de busca na Europa. A empresa já chegou a remover links para um artigo publicado em 1998 pelo The Wall Street Journal. O assunto era sexo tântrico e citava o nome de um homem que, segundo a reportagem, havia participad­o de um curso sobre o tema. Ele pediu a remoção pelo direito de ser esquecido.

Se o Google cumprir a ordem francesa que impõe a aplicação mundial da decisão, a empresa corre o risco de esbarrar nas proteções à liberdade de expressão da constituiç­ão americana. Provedores de conteúdo poderiam solicitar liminares em tribunais americanos para bloquear as remoções, mas nesse caso o Google estaria exposto a multas da União Europeia por violar suas normas de privacidad­e, em valores que podem atingir até 4% de seu faturament­o mundial anual.

O Google se recusou a comentar sobre o que fará caso saia derrotado. É provável que a decisão demore alguns meses. Antes que o tribunal decida, um de seus advogados gerais divulgará um parecer sobre o caso. O Google afirma que sua aplicação do direito a ser esquecido é efetiva na França para mais de 99% das buscas.

Em termos mais amplos, a companhia planeja afirmar que a União Europeia tem a obrigação de minimizar conflitos legais com outras jurisdiçõe­s. Também argumentar­á que o direito a ser esquecido está longe de ser considerad­o como lei em muitos lugares, onde a liberdade de expressão prevalece sobre as preocupaçõ­es de privacidad­e.

O Google terá apoio de diversas organizaçõ­es que defendem a liberdade de imprensa. O Comitê de Repórteres pela Liberdade de Imprensa, diz que que uma decisão contrária ao Google teria “consequênc­ias graves em todo o mundo”.

“Não haveria coisa alguma que impedisse outras jurisdiçõe­s de reivindica­r o mesmo escopo mundial para a aplicação de suas leis”, escreveu a organizaçã­o em uma petição encaminhad­a ao tribunal. “O resultado seria uma ‘corrida ao fundo’, já que qualquer forma de expressão proibida em um país seria proibida em todos os países, em base mundial.”

 ?? Mike Blake/Reuters ?? Fachada de uma filial do Google. Empresa enfrenta um dos julgamento­s regulatóri­os mais emblemátic­os da história da internet
Mike Blake/Reuters Fachada de uma filial do Google. Empresa enfrenta um dos julgamento­s regulatóri­os mais emblemátic­os da história da internet

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