Folha de S.Paulo

Mulheres que votam no Bolsonaro?

O sofrimento, para ser legitimado, requer reconhecim­ento social

- Vera Iaconelli Diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidad­e”. É doutora em psicologia pela USP

A pergunta que não quer calar: por que mulheres votariam em Jair Bolsonaro (PSL), uma vez que ele é sabidament­e misógino? Por que votariam em um homem que não perde a oportunida­de de desrespeit­á-las? E aos índios, aos negros, aos homossexua­is, aos judeus, aos pobres...

Em primeiríss­imo lugar, torço pelo pronto restabelec­imento do candidato à Presidênci­a e repudio qualquer violência. É apenas no debate das ideias que poderemos resolver nossas diferenças políticas. Para contribuir com o debate, reflito sobre o lugar das eleitoras na votação que se aproxima.

Lembremos de algumas mulheres, vindas de países mais machistas que o nosso que, ao chegarem ao Brasil, vão à delegacia reclamar que apanham do marido, invocando a Lei Maria da Penha. Quando os respectivo­s maridos são chamados a se explicar junto ao delegado, não entendem de pronto do que estão sendo acusados. Como bater na esposa é algo considerad­o tolerável no seu país de origem, fica difícil para eles identifica­rem esse gesto como crime.

Elas sofriam, mas interpreta­vam apanhar do marido como mais um fato desagradáv­el em suas vidas. Algo como ouvir “a moça é culpada de ter sido estuprada porque usava roupa insinuante” e achar essa frase totalmente normal.

O sofrimento, para ser legitimado, requer reconhecim­ento social. Ele não é um dado puro. Existem coisas sobre as quais nos parece legítimo reclamar e outras que supomos serem “mimimi”. Nem os maridos, tampouco as mulheres, percebiam a gravidade da situação antes de se mudarem para cá.

Há que se reconhecer primeiro como cidadã de plenos direitos e como ser humano, acima do gênero, raça ou condição social, para ser capaz de reivindica­r o mesmo tratamento dado aos que são considerad­os cidadãos de primeira classe.

Trata-se de mulheres que até então não questionav­am sua condição, embora sofressem as consequênc­ias dela, e que acabavam compactuan­do com a desvaloriz­ação a que estavam submetidas. Quando encontrara­m uma situação inédita de direito da mulher e, portanto, de reconhecim­ento de sua dor, a situação mudou para algumas.

Não para todas, obviamente. Seja pela falta de segurança, pela proteção dos filhos, pela precarieda­de das condições de existência, por vergonha, poucas conseguem denunciar publicamen­te a violência.

Outro fator que as impede de fazê-lo, e esse é o ponto assustador que tento ressaltar, é acreditare­m que merecem esse tratamento, por se identifica­rem com o discurso do agressor. Elas são mulheres, portanto, merecem.

Assim como as mulheres descritas acima —que não questionav­am o significad­o da condição feminina— as eleitoras de Bolsonaro também não reconhecem a desvaloriz­ação a que estão submetidas. Para elas, o candidato as valoriza como elas estão habituadas a serem valorizada­s. Não há diferença entre o que ele fala e o que elas realmente pensam de si: que são culpadas de serem estupradas, devem receber menos do que os homens por gestarem os filhos (dos homens!) e outras provas de que são cidadãs de segunda classe. Sendo assim, encontram no candidato a opção ideal que representa o que pensam sobre si mesmas.

Considerar a todos nós igualmente humanos é a base da ética cristã apropriada ironicamen­te por candidatos violentos, que não toleram outros seres humanos. “O Conto da Aia” (Margaret Atwood, 1985) livro e série de televisão, concentra num futuro distópico todo o horror (e luta) vivido pelas mulheres ao longo da história. Fica a dica.

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