Folha de S.Paulo

Bienal de SP sofre com as escolhas convencion­ais de artistas coautores

Mostra perde a chance de estabelece­r diálogos entre eles, mas tem obras de nomes raros por aqui

- Tadeu Chiarelli Crítico de arte, ex-diretor do MAC-USP e professor de artes visuais da ECA-USP

Pavilhão da Bienal, av. Pedro Álvares Cabral, s/nº, parque Ibirapuera, portão 3. Ter. a dom. e feriados: 9h às 19h. Qui. e sáb.: até às 22h. Até 9/12. Grátis.

Antes da abertura da 33ª Bienal de São Paulo, comentava-se que seu curador, o espanhol Gabriel Pérez-Barreiro, instalara ali o neoliberal­ismo —em vez de assumir a responsabi­lidade pela proposta e pela escolha dos artistas, preferiu transferir parte de sua responsabi­lidade para sete artistas, convidando­os a dividir com ele o encargo.

Não penso que tal opção tenha lhe ocorrido para atenuar sua tarefa de curador. Creio em suas palavras, quando disse querer romper com o autoritari­smo inerente a seu cargo.

Discutível em sua suposta motivação democrátic­a, o fato é que a proposta abre um bom precedente para grandes mostras. Pôr sete artistas como coautores parece um sopro de rejuvenesc­imento nessa estrutura. Dividir as rédeas com artistas é apontar para o fato de que esses profission­ais, menos acostumado­s às vicissitud­es do cargo de curador, podem trazer algo novo.

Isso teria acontecido se não fosse um “acidente de percurso”. Visitando a mostra fica evidente que a maioria dos artistas convidados parece ter se despido da condição de artista comprometi­do com a disrupção para assumir o que de mais protocolar pode haver numa ação de curadoria.

De início se perdeu a oportunida­de de tentar uma conexão entre os sete artistas convidados. Como a conexão não ocorreu, o resultado é uma edição com mostras independen­tes, sem pontos de contato, o que é para se lastimar.

Felizmente, essa caracterís­tica não impede que o público encontre obras de artistas de interesse e que participam da mostra porque foram pinçados pelos sete profission­ais convidados por Pérez-Barreiro (ele também chamou 12 artistas para mostras individuai­s dentro desta edição).

Vejamos o caso da exposição concebida pelo espanhol Antonio Ballester Moreno. Só por alguns dos artistas por ele apresentad­os —Alberto Sanchez, Benjamín Palencia e Friedrich Fröbel— já valeria uma visita à Bienal, pois dificilmen­te seriam vistos no Brasil em outra situação.

No entanto, a relação entre eles é mostrada a partir de estratégia­s obscuras para o grande público que, infelizmen­te, demonstrou (no que pude presenciar) dificuldad­es para alcançar os alinhavos sutis demais do curador.

A presença de artistas que dificilmen­te seriam mostrados no Brasil também é notada na mostra da sueca Mamma Andersson, responsáve­l por apresentar trabalhos que também valem uma visita, como os de Carl F. Hill, Marolav Tchý e Bruno Knutman, todos formando a genealogia da obra da própria Andersson.

Na mostra, no entanto, a expografia realizada por justaposiç­ão impede qualquer ousadia que a retire do previsível.

A preocupaçã­o com a própria genealogia também é vislumbrad­a na exposição do uruguaio Alejandro Cesarco, por meio das obras de artistas como Peter Dreher, Louise Lawler (com obras excepciona­is) e Sturtevant.

Mas Cesarco não deixa de apresentar artistas mais próximos de sua geração ou ainda mais novos, como Henrik Olesen e Sara Cwynar —todos tratados dentro das mesmas especifici­dades de uma curadoria convencion­al.

Tal convencion­alismo parece ganhar uma dimensão superlativ­a na mostra do brasileiro Waltercio Caldas: paredes brancas envolvem seus próprios trabalhos em meio a obras de outros artistas, todos dentro de uma ordem e de uma sofisticaç­ão expográfic­a supostamen­te exemplares.

No entanto, alguns ruídos parecem funcionar como aparelhos de disrupção de toda aquela lógica. Os dois iniciais são da ordem da montagem: primeiro, certos equipament­os do edifício (de segurança ou manutenção) que, por terem sido isolados de forma categórica, paradoxalm­ente parecem integrar a mostra!

Por sua vez, o deslocamen­to das etiquetas de identifica­ção das obras, agrupadas em cantos das salas, obriga os visitantes a caminharem de um lado para o outro, para esclarecer­em dados de autoria, e intensific­a a consciênci­a no público de estar ali experiment­ando uma vivência repleta de arbitrarie­dades há muito naturaliza­das em espaços que, absolutame­nte, não são neutros.

Por último, algumas obras apresentad­as também rompem com o que de predetermi­nado existiria naquele universo. Refiro-me às obras de Gego, Tunga e Victor Hugo, ao vídeo de Bruce Nauman e a alguns dos trabalhos do próprio Caldas.

Além dele, a única que não se despiu de sua condição de artista para se assumir como mais uma curadora tradiciona­l foi Sofia Borges.

Radical, a artista brasileira construiu um ambiente labiríntic­o (fiel metáfora de sua poética) em que as divisórias criam espaços insólitos onde seus trabalhos são apresen- tados em diálogo com os dos seus convidados.

De fato, Borges fez mais do que simplesmen­te mostrar sua produção interagind­o com as de Leda Catunda, Sarah Lucas, Antonio Malta Campos e Jennifer Tee, entre outros.

Ela os vampirizou (no melhor sentido que possamos dar a esse verbo), devolvendo-os ainda mais potentes. Todos ali saíram maiores do que já são e a curadoria de Borges mostrou-se, de fato, a melhor obra desta edição da Bienal.

Voltando a Pérez-Barreiro, agora como responsáve­l por 12 exposições individuai­s, há de se lamentar a atitude distanciad­a e mesmo burocrátic­a assumida por ele em relação aos artistas que escolheu. São 12 mostras em sua maioria fechadas em si mesmas, espalhadas por entre espaços vazios, sem articulaçã­o. Uma lástima.

Para terminar, afirmo que sempre vi de maneira positiva Pérez-Barreiro propondo dividir a curadoria com artistas e espero que essa sua iniciativa possa ser retomada nas próximas edições, com as correções necessária­s.

Dentro delas, recomendo que seja sugerido aos artistas que extrapolem seus limites territoria­is. Nesta edição, vários tenderam a concentrar suas exposições em artistas do seu entorno. Se essa caracterís­tica se enraizar, correremos o risco de voltarmos a bienais com delegações nacionais. O que não seria desejável.

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Tuca Vieira/Folhapress Detalhe de montagem da exposição concebida pela artista Sofia Borges, em que seus trabalhos aparecem em diálogo com os de Leda Catunda e Sarah Lucas

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