Folha de S.Paulo

Minha mãe, uma mulher do século 20

Beatriz Segall abriu caminho às mulheres de hoje

- Sergio Segall Diretor de cinema, empresário e filho mais velho de Beatriz Segall

Minha mãe se foi. Beatriz Segall, 92 anos de uma longa e bem vivida vida, uma das grandes damas do teatro brasileiro, uma mulher do século 20. Filha de professore­s secundaris­tas conservado­res, estudou letras, foi professora de francês, mas queria mesmo era ser atriz.

Contra a vontade de meus avós, no fim dos anos 40, conseguiu uma bolsa de estudos e foi para a França. Já era uma mulher de ambição, queria conquistar o mundo. Foi lá que conheceu meu pai, Mauricio Segall.

Quando voltou ao Brasil, começou a atuar e assim o fez até meu nascimento, em 1956. Como ela era ainda uma mulher do século 20, parou de trabalhar para cuidar dos filhos —eu, Mario e Paulo.

Em 1967, meu pai e ela, junto com Fernanda Montenegro e Fernando Torres, arrendaram o teatro São Pedro, na Barra Funda, em São Paulo, e deram origem ao grupo teatral São Pedro. Minha mãe voltou a atuar.

Logo em seguida, porém, veio o AI-5, que radicalizo­u a ditadura no Brasil. Ainda hoje me lembro de todos aqueles grandes nomes do teatro, no palco do São Pedro, no meio de um ensaio interrompi­do, ouvindo pelo rádio a leitura do famigerado ato, consciente­s de que a peça que ensaiavam já estava condenada e seria proibida. Fernando chorava, Fernanda parecia assustada, Guarnieri ficou a um canto cabisbaixo, perdido e confuso. Ainda hoje recordo o silêncio profundo daquele momento.

Pouco depois, meu pai foi preso, e minha mãe se viu obrigada a cuidar do teatro sozinha, enfrentand­o ameaças, a censura e as dificuldad­es financeira­s. Aqueles foram tempos em que ela foi mesmo uma mulher do século 20. Teve que reunir coragem para tocar o trabalho, cuidar dos filhos sozinha, tudo isso enquanto tentava defender meu pai e tirá-lo da cadeia.

Quando os anos 70 chegaram ao fim, minha mãe se separou de meu pai. Creio que ela queria respirar novos ares, viver a democratiz­ação que chegava, fazer outros teatros e, como toda estrela sempre deseja, conquistar o grande público.

Foi quando ela conseguiu um espaço na Globo. Aos 50 anos, era uma atriz pouco conhecida. Como toda principian­te numa grande organizaçã­o, teve que aceitar sua condição de subalterna e lutar. Mas não tardou a se impor e acabou por fazer novelas icônicas, como “Dancing Days” e “Vale Tudo”, na qual acabou por interpreta­r sua personagem mais famosa, Odete Roitman. Ela tinha enfim, virado uma estrela!

No teatro, que permaneceu sua grande paixão, produziu e atuou em grandes textos e com grandes diretores, deixando saudades com “Emily”, “Três Mulheres Altas” e tantas outras peças. Grandes autores foram encenados por ela, como Shakespear­e, Brecht, Tchekhov, Ibsen, Tennessee Williams, Dürrenmatt, Albee, Guarnieri, Vianinha, Plinio Marcos etc. Nunca se furtou a tomar posição nas grandes questões culturais e políticas do Brasil. Foi uma mulher de opiniões fortes.

Seu último trabalho foi em “Nine, Um Musical Felliniano”. No dia de seu 89º aniversári­o, quando se preparavam os colegas para uma homenagem nos aplausos finais, ela, ao agradecer, tomou um tombo, se estatelou no centro do palco e teve que ser socorrida em um hospital.

Para muitos, foi triste e melancólic­o. Mas para mim foi glorioso porque minha mãe, esta mulher do século 20, que fez sua parte para abrir caminho às mulheres do século 21, trabalhou até o fim, até não aguentar mais. Literalmen­te! E, quando aconteceu, aconteceu como tinha de acontecer com uma grande atriz do teatro. Não foi em casa, nem na privacidad­e do seu quarto. Foi em cena aberta, em grande estilo! Assim foi minha mãe, minha mãe que se foi.

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