Folha de S.Paulo

Mercados apunhalam até amigos

Crise na Argentina põe fantasmas no horizonte

- Clóvis Rossi Repórter especial, membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot. DSTQQS SC ló vis R os si| J aime S pitzcovsky, Mathi as Alencastro | Clóvis Rossi

Há um velho ditado argentino que diz que “quem se queimou com leite vê uma vaca e chora”.

Pois uma belíssima vaca acaba de ser posta na agenda do país, pela boca de Alberto Rodríguez Saá, governador da província de San Luis: “Ninguém está pedindo nada, mas adiantar as eleições pode ser uma possibilid­ade”, disparou, segundo La Nación.

Óbvia alusão à crise que consome o prestígio do presidente Mauricio Macri, que, em tese, só enfrentará eleições em 2019.

Qual é a vaca nessa história? O sobrenome do autor da frase: ele é irmão de Adolfo Rodríguez Saá, um dos presidente­s que, em 2001, transforma­ram a Casa Rosada em motel, pela curta permanênci­a de seus ocupantes (houve cinco mandatário­s em 12 dias).

Rodríguez Saá, embora efêmero, teve tempo para promover o que foi então o maior calote da história do planeta.

Para um país que se queimou muitas vezes com os mais diferentes tipos de leite (oito calotes, dois surtos hiperinfla­cionários, 20 programas de ajuda do Fundo Monetário Internacio­nal em 60 anos e incontávei­s crises da moeda), é óbvio que evocar as vacas de 17 anos atrás só pode fazer chorar.

Ainda mais que nenhum presidente argentino não peronista e não militar conseguiu completar o mandato desde que Juan Domingo Perón morreu, em 1974. Macri não é peronista. Ao contrário, apresentas­e como o presidente que vai corrigir os erros atribuídos à Cristina Fernández de Kirchner, a mais recente mandatária peronista (2007-2015).

Faz sentido evocar também o calote de 2001? Até poucos meses atrás, não fazia. Nem acho que faça hoje, mas o Financial Times desta quartafeir­a (12) lembra que há dois déficits gêmeos: o orçamentár­io (3,9% do PIB) e o da conta corrente (que mede todas as transações com o exterior e é recorde, 4,8% do PIB).

Conclui afirmando que crescem as suspeitas de que a Argentina tenha que declarar outro calote, “apesar de um socorro do FMI de US$ 50 bilhões (R$ 206 bilhões)”.

Aliás, socorro do FMI é ver outra vaca: vem sempre atado a programas de austeridad­e que inevitavel­mente puxam para baixo o cresciment­o econômico e, em consequênc­ia, elevam desemprego e pobreza.

É como diz o Financial Times: “Taxa de juros de 60%, inflação batendo em 31,2%, o peso perdendo 52% do valor só este ano e um pacote emergencia­l de austeridad­e apontam para uma recessão no horizonte”.

Há, pois, vacas demais à vista para fazer a Argentina chorar, no que é, ademais, um formidável contraste com a promessa de Macri de promover uma “revolução da alegria”.

O que torna o cenário ainda mais complexo é o que o Financial Times chama de “questão vital”, assim formulada: “Se o governo tecnocráti­co do país, que seguiu a ortodoxia econômica e ao mesmo tempo gozou de pleno suporte internacio­nal, não pode enfrentar os volúveis mercados, quem pode?”

Vale para a Argentina, vale para o Brasil. É sempre bom lembrar que os “volúveis mercados” apostaram tanto contra a candidatur­a de Luiz Inácio Lula da Silva em 2002 que o levaram a render-se, jogar no lixo as propostas prévias do PT (“bravatas”, diria) e fazer um governo pró-mercado.

É a versão tapuia do leite que queimou. Ninguém vai querer agora ver uma vaca e ser obrigado a chorar.

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