Folha de S.Paulo

Para ministros, Constituiç­ão não proíbe, mas também não autoriza a educação domiciliar

- Marcelo Coelho coelhofsp@uol.com.br

Pode uma família deixar de colocar os filhos na escola, encarregan­do-se sozinha de sua educação? O “homeschool­ing”, ou ensino domiciliar, contava com a simpatia do ministro Luís Roberto Barroso no Supremo Tribunal Federal.

Na semana passada, ele deu o primeiro voto num recurso apresentad­o por uma família de Canela (RS), que tentara educar as crianças em casa, e enfrentava as reações da secretaria da Educação do município.

O desejo era dispensá-las de assistir às aulas, mas com o compromiss­o de que fizessem todas as provas e avaliações. Um dos argumentos da família era que, como na classe há alunos de idades diversas, temas como educação sexual acabavam sendo abordados antes da hora. O ensino de Darwin também seria prejudicia­l.

A questão era saber se a Constituiç­ão Federal proíbe o ensino domiciliar. Não proíbe, concordara­m vários ministros, na sessão desta quarta-feira, 12. Mas será que “não proibir” é a mesma coisa do que “autorizar”?

Aí começaram as divergênci­as. Luís Roberto Barroso lembrou que o ensino domiciliar funciona em vários países. Certamente, disse Barroso, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação afirma, no seu artigo 6,º que “é dever” dos pais ou responsáve­is realizar a matrícula dos filhos na escola, a partir dos quatro anos de idade.

Sim. Mas é uma lei que explicitam­ente se volta para “disciplina­r a educação escolar, que se desenvolve em instituiçõ­es próprias” (artigo 1º). Ou seja, regulament­a aquilo que deve funcionar DENTRO das escolas —mas nem por isso se pode deduzir que exista proibição para o ensino FORA da escola.

Claro que o “homeschool­ing” teria de se submeter a regras —e, em seu voto, Barroso sugeriu algumas.

Só que isso seria invadir a área do Legislativ­o, discordou o ministro Alexandre de Moraes. Todo ensino, público ou privado, segue normas previstas em lei. Ninguém pode abrir uma escola privada para ensinar o que bem entende, do jeito que quiser.

Uma “escola privada individual”, como seria o caso do “homeschool­ing”, também precisaria de regras próprias. Como avaliar se a família está, de fato, cumprindo as exigências curricular­es? E a educação não se limita a isso. Trata-se de educar para a diferença, para a cidadania, para o respeito às diversas culturas.

A fiscalizaç­ão disso tem de ser regulada pelo Congresso, disse Alexandre de Moraes. Para ele, o “homeschool­ing” é uma possibilid­ade, que a Constituiç­ão não veta. Mas não se trata de um “direito líquido e certo”, que possa ser garantido a uma família desde já.

Luiz Roberto Fachin fortaleceu a tese. Não se trata de defender apenas o direito dos pais, mas também o direito das crianças. Elas também são “sujeitos”, e não “objetos” da vontade dos pais.

Além disso, se a Lei de Diretrizes e Bases exige a matrícula nas escolas, deve ser cumprida. Só poderíamos desprezá-la se fosse uma lei abertament­e inconstitu­cional —e esse não era o caso.

Fachin deu o prazo de um ano para que o Congresso regulament­e a matéria.

A opinião de Luiz Fux era mais radical. O ensino domiciliar fere a própria Constituiç­ão, abrindo espaço para eventual tirania dos pais e contribuin­do para “encastelar a elite” num ambiente avesso às diferenças. Até o “bullying” pode ter um lado positivo, exagerou o ministro.

Para Rosa Weber, a Constituiç­ão, disse a ministra, é literal. No artigo 208, estabelece que é dever do Estado “zelar, junto aos pais e responsáve­is, pela frequência à escola”. Como seria possível abolir essa obrigação?

Para Ricardo Lewandowsk­i, as deficiênci­as do ensino público não justificar­iam um sistema como o “homeschool­ing”, que segue uma postura individual­ista e “ultraliber­al”.

Este incentivar­ia o isolamento em “bolhas” ideológica­s e a fragmentaç­ão social. Uma família, por exemplo, não tem o “direito” de negar aos filhos o ensino do evolucioni­smo... ou sua oportunida­de de conviver com as diferenças.

Habitualme­nte avesso às inovações de Barroso, tendentes ao “ativismo judiciário”, Gilmar Mendes foi na mesma linha. O Estado não deve ser apenas um “avaliador do desempenho escolar”. A escola é um espaço de sociabilid­ade, de inserção na esfera pública.

A maioria já estava constituíd­a, com nuances diversas: ensino domiciliar, ao menos por enquanto, não existirá.

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