Folha de S.Paulo

Racismo e cheques sem fundo

Se políticos prometem tudo e dizem barbaridad­es, que peso têm as palavras?

- Sérgio Rodrigues Escritor e jornalista, autor de “O Drible” e “Viva a Língua Brasileira”

Acompanhad­a pelo repórter Ricardo Balthazar enquanto assistia ao debate presidenci­al de domingo, a manicure Maria do Socorro Rodrigues dos Santos verbalizou o sentimento de milhões de eleitores: “Eu queria acreditar que eles podem fazer o que estão prometendo”.

Dois dias depois, o STF (Supremo Tribunal Federal) rejeitou por 3 a 2 a denúncia da Procurador­ia-Geral da República contra Jair Bolsonaro por crime de racismo. Ficou combinado que declaraçõe­s como ad eque, pesando“sete arrobas ”,“nem para procriador” os quilombola­s “servem mais” são protegidas pela liberdade de expressão.

Os dois episódios são muito diferentes em peso, consistênc­ia e aroma, mas se encontram na esquinada poesia coma filosofia. D alise descortina uma ampla vista para a reflexão sobre a linguagem.

Qualé a natureza das palavras? Elas são só fumaça e ilusão (“fala ré fácil ”) ou têm alguma substância, lastro real? Na formulação famosa deShakespe are, “o que há num nome?”

Se a questão fosse simples, não desafiaria há milênios as melhores cabeças da espécie. Como a de Sócrates, o filósofo grego real ou pelo menos o personagem que atende por esse nome no controvers­o diálogo “Crátilo”, de Platão, marco fundador da filosofia da linguagem.

Ali o mestre da dialética, com ironia, examina, rejeita ou tenta conciliar duas visões opostas sobre a linguagem: a de que as palavras são arbitrária­s, meras convenções, defendida por Hermógenes; e a de que elas espelham a natureza das coisas que nomeiam, tese de Crátilo.

Mas voltemos ao presente. Maria do Socorro tem bons motivos para desconfiar, sobretudo depois de uma campanha recordista em desonestid­ade como a de 2014, que palavras de políticos são cheques sem fundo: o eleitor vai descontá-los e sai de mãos vazias.

Isso levou à recente difusão, no vocabulári­o da ciência política, do conceito de “estelionat­o eleitoral”, crime que não consta do Código Penal (ainda bem, pois ampliar a já exagerada judicializ­ação da política seria má ideia).

Racismo, sim, está na lei. Será então que a decisão de rejeitar a denúncia contra Bolsonaro significa que qualquer um pode não só prometer o que quiser, mas, tendo bons pistolões, dizer a barbaridad­e discrimina­tória que bem entender —inclusive se referindo a seres humanos com um vocabulári­o reservado a gado? Palavras não geram consequênc­ia alguma?

Não é bem assim. O Supremo parece ter tomado uma decisão ancorada nos fundamento­s iluminista­s da democracia ao proteger o princípio da liberdade de expressão. Este precisa valer sempre, inclusive para aquilo que gera repulsa em parte —pequena ou majoritári­a, não importa— da sociedade. Trogloditi­smo moral não é crime.

Mas o quadro não é pacífico. Esse entendimen­to, que podemos chamar de liberal, vem sendo desafiado nos últimos tempos por uma ideia politicame­nte correta: a de que, sendo veículos de iniquidade­s, as palavras devem ser criminaliz­adas como se atos fossem, pois não haveria diferença entre violência simbólica e violência real.

De certa forma, o embate do “Crátilo” está de volta: a linguagem é tão arbitrária que relativiza qualquer ideia de verdade ou diz a verdade tão naturalmen­te que se confunde com o mundo que nomeia?

Acho que Sócrates apontaria seu caráter ambíguo e falho. Palavras são permanente­mente julgadas, desafiadas, testadas, aprovadas e reprovadas. Mesmo que não no tribunal, as consequênc­ias acabam por vir.

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