Racismo e cheques sem fundo
Se políticos prometem tudo e dizem barbaridades, que peso têm as palavras?
Acompanhada pelo repórter Ricardo Balthazar enquanto assistia ao debate presidencial de domingo, a manicure Maria do Socorro Rodrigues dos Santos verbalizou o sentimento de milhões de eleitores: “Eu queria acreditar que eles podem fazer o que estão prometendo”.
Dois dias depois, o STF (Supremo Tribunal Federal) rejeitou por 3 a 2 a denúncia da Procuradoria-Geral da República contra Jair Bolsonaro por crime de racismo. Ficou combinado que declarações como ad eque, pesando“sete arrobas ”,“nem para procriador” os quilombolas “servem mais” são protegidas pela liberdade de expressão.
Os dois episódios são muito diferentes em peso, consistência e aroma, mas se encontram na esquinada poesia coma filosofia. D alise descortina uma ampla vista para a reflexão sobre a linguagem.
Qualé a natureza das palavras? Elas são só fumaça e ilusão (“fala ré fácil ”) ou têm alguma substância, lastro real? Na formulação famosa deShakespe are, “o que há num nome?”
Se a questão fosse simples, não desafiaria há milênios as melhores cabeças da espécie. Como a de Sócrates, o filósofo grego real ou pelo menos o personagem que atende por esse nome no controverso diálogo “Crátilo”, de Platão, marco fundador da filosofia da linguagem.
Ali o mestre da dialética, com ironia, examina, rejeita ou tenta conciliar duas visões opostas sobre a linguagem: a de que as palavras são arbitrárias, meras convenções, defendida por Hermógenes; e a de que elas espelham a natureza das coisas que nomeiam, tese de Crátilo.
Mas voltemos ao presente. Maria do Socorro tem bons motivos para desconfiar, sobretudo depois de uma campanha recordista em desonestidade como a de 2014, que palavras de políticos são cheques sem fundo: o eleitor vai descontá-los e sai de mãos vazias.
Isso levou à recente difusão, no vocabulário da ciência política, do conceito de “estelionato eleitoral”, crime que não consta do Código Penal (ainda bem, pois ampliar a já exagerada judicialização da política seria má ideia).
Racismo, sim, está na lei. Será então que a decisão de rejeitar a denúncia contra Bolsonaro significa que qualquer um pode não só prometer o que quiser, mas, tendo bons pistolões, dizer a barbaridade discriminatória que bem entender —inclusive se referindo a seres humanos com um vocabulário reservado a gado? Palavras não geram consequência alguma?
Não é bem assim. O Supremo parece ter tomado uma decisão ancorada nos fundamentos iluministas da democracia ao proteger o princípio da liberdade de expressão. Este precisa valer sempre, inclusive para aquilo que gera repulsa em parte —pequena ou majoritária, não importa— da sociedade. Trogloditismo moral não é crime.
Mas o quadro não é pacífico. Esse entendimento, que podemos chamar de liberal, vem sendo desafiado nos últimos tempos por uma ideia politicamente correta: a de que, sendo veículos de iniquidades, as palavras devem ser criminalizadas como se atos fossem, pois não haveria diferença entre violência simbólica e violência real.
De certa forma, o embate do “Crátilo” está de volta: a linguagem é tão arbitrária que relativiza qualquer ideia de verdade ou diz a verdade tão naturalmente que se confunde com o mundo que nomeia?
Acho que Sócrates apontaria seu caráter ambíguo e falho. Palavras são permanentemente julgadas, desafiadas, testadas, aprovadas e reprovadas. Mesmo que não no tribunal, as consequências acabam por vir.