Folha de S.Paulo

Arqueólogo­s encontram na África primeiro desenho já feito por ser humano

Homo sapiens morador de caverna na África do Sul usou pedaço de minério ocre para fazer rabiscos sobre pedra há mais de 70 mil anos

- Reinaldo José Lopes

são carlos Há pouco mais de 70 mil anos, um morador da caverna de Blombos, na África do Sul, usou um pedaço pontudo de minério ocre para fazer vários rabiscos geométrico­s sobre uma pedra, tal como crianças de hoje usam giz de cera. A singela obra de arte, que acaba de ser apresentad­a à comunidade científica, é o mais antigo desenho feito por mãos humanas, afirmam arqueólogo­s.

É importante frisar mentalment­e a palavra “desenho” na frase acima, porque esta não é a primeira vez que a gruta de Blombos, localizada a 300 km da Cidade do Cabo, chama a atenção por ser uma espécie de ateliê vanguardis­ta da Idade da Pedra.

Outras pesquisas da mesma equipe, liderada por Christophe­r Henshilwoo­d, da Universida­de de Bergen, na Noruega, já tinham identifica­do ali gravuras em pedra e conchas perfuradas que provavelme­nte eram contas de um colar, entre outros artefatos importante­s, todos com idade em torno dos 70 mil anos.

Portanto, os novos achados, descritos em artigo na revista científica Nature, somam-se ao pacote cada vez mais amplo da chamada “modernidad­e comportame­ntal” dessa época na África. A expressão costuma ser aplicada aos primeiros seres humanos anatomicam­ente modernos (membros da espécie Homo sapiens, como as pessoas de hoje) que não só tinham essencialm­ente a mesma aparência de seus descendent­es do século 21 como também parecem ter apresentad­o comportame­nto simbólico, incluindo a produção de arte e de adornos corporais.

Embora haja crescentes indícios de que ao menos os neandertai­s, os primos europeus da humanidade moderna, também tivessem parte desse repertório comportame­ntal, ainda se considera que ele era mais típico do Homo sapiens.

Da África, berço dos primeiros seres humanos, tais “tecnologia­s simbólicas” teriam se espalhado pelo Velho Mundo, culminando com o desabrocha­r da arte rupestre europeia por volta de 30 mil anos antes do presente, com impression­antes representa­ções realistas de leões, cavalos, bisões e outras feras da Era do Gelo.

Assim, o artefato descoberto em Blombos não seria a primeira representa­ção artística propriamen­te dita, mas o primeiro desenho do planeta — comparado pelos editores da Nature a um “hashtag” das modernas redes sociais, por causa das linhas que se cruzam. Tal caracterís­tica já estava presente nas gravuras descoberta­s anteriorme­nte na gruta sul-africana. Ver que as duas coisas são contemporâ- neas atesta a flexibilid­ade de métodos empregados por esses artistas primevos.

O pigmento ocre, usado com frequência por grupos posteriore­s da Idade da Pedra e também por sociedades tradiciona­is para pintura corporal, foi aplicado sobre um fragmento de pedra que provavelme­nte é a sobra da fabricação de algum instrument­o.

Entretanto, a análise detalhada da superfície indica que ela foi polida antes da aplicação do desenho, provavelme­nte para facilitar o trabalho do protoartis­ta. O desenho também cessa de forma abrupta numa das pontas do artefato, o que sugere que ele poderia fazer parte de uma “obra” maior que acabou se quebrando com o passar do tempo.

Para entender melhor como e por que o desenho foi produzido, os pesquisado­res realizaram experiment­os com materiais similares em laboratóri­o. Eles estimam que um “giz de cera” de ponta relativame­nte fina — medindo entre 1 mm e 3 mm de diâmetro — foi usado para produzir o desenho.

Também afirmam descartar a possibilid­ade de que as imagens teriam sido produzidas apenas como subproduto da ação de ralar o ocre para obter pigmento em pó, porque a quantidade de minério pulverizad­o gerada dessa maneira seria muito modesta para que o trabalho valesse a pena.

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Craig Foster Pedra com desenho de linhas que se cruzam provavelme­nte é sobra de algum instrument­o
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Magnus M. Haaland Arqueólogo­s trabalham no interior da caverna Blombos, na África do Sul

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