Folha de S.Paulo

Entre a luz e as trevas

Esquecida por anos e estigmatiz­ada pela loucura, escritora Maura Lopes Cançado tem obra redescober­ta; seu livro-diário ‘Hospício É Deus’ vira monólogo com Maria Padilha

- Maria Luísa Barsanelli

são paulo Maura Lopes Cançado era mulher de gestos extravagan­tes, dada a arroubos.

Conta-se que num dos acessos de fúria —surtos de uma força obscura, como definiria o colega Carlos Heitor Cony— jogou uma máquina de escrever pela janela do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil. Noutro, derrubou um armário de aço sobre um sujeito com quem se irritara.

Entusiasta da aviação, tirou brevê ainda na adolescênc­ia e pilotou por anos um Paulistinh­a CAP-4, mas um dos voos acabou em acidente. Arrebentou fios e postes e se chocou contra uma casa. Mas não foi defeito na aeronave ou descuido da condutora. Ela explicaria que o fez de propósito, para sentir a emoção da queda.

Altos e baixos permearam toda a vida da mineira. Era tida como promessa literária, brilhante na visão da crítica e de colegas. Além de Cony, convivia com Ferreira Gullar e Reynaldo Jardim no respeitado suplemento literário, onde escreveu de 1958 a 1961.

Mas com o tempo o reconhecim­ento foi deixado de lado, e sua obra só foi redescober­ta nos últimos anos, muito depois de sua morte, em 1993.

É de 2002 o primeiro registro de tese sobre a escritora no banco da fundação Capes. Há três anos, a editora Autêntica relançou seus dois únicos livros, que até então só eram encontrado­s em sebos. Ela ainda foi tema de um ciclo da Academia Brasileira de Letras alguns meses atrás e agora é revista no teatro, em monólogo com Maria Padilha.

Muito do ostracismo, opinam estudiosos, vem do estigma de sua loucura, à qual sua imagem ficou profundame­nte atrelada, lembra a pesquisado­ra Maria Luisa Scaramella na sua tese de doutorado pela Unicamp “Narrativas e Sobreposiç­ões: Notas sobre Maura Lopes Cançado”.

Nascida em 1929 numa família abastada de São Gonçalo do Abaeté, vizinha a Patos de Minas, a autora recebeu aos sete anos o diagnóstic­o de esquizofre­nia. Já na infância, inventava histórias, de que era filha de russos ou de que os tios nasceram na China, numa das viagens de seus avós.

Dos devaneios e das lendas sobre a escritora, um tanto ficou nebuloso em sua biografia. O acidente de avião, ela depois escreveria, foi na verdade causado por um amigo que havia assumido a direção. Um olvido, em parte, porque sua história nem sempre agradava —seu estilo libertino ia de encontro ao recato da época.

Maura Lopes Cançado teve uma infância conturbada. Sofria abusos sexuais de empregados e depois se culpava pelas agressões. Mas desde jovem se dizia “muito sensual”.

Aos 15 anos, engravidou de Jair Praxedes, filho de um imponente coronel da região — casou-se no religioso com o rapaz, mas a união não durou mais que uns anos. Deu à criança o nome imodesto de Cesarion, mesmo batismo do filho de Cleópatra e Júlio Cesar.

Não era figura das mais esbeltas, mas causava certo fascínio. Seduzia com um método aprendido nos filmes de Ingrid Bergman, um olhar altivo, mirando o próprio nariz.

Sua sedução resvala já na sua escrita, afirma a atriz Maria Padilha, que partiu das sugestões do texto da autora para sua interpreta­ção em “Diários do Abismo”, adaptação teatral de “Hospício É Deus”.

O livro é uma espécie de diário da escritora sobre suas internaçõe­s no Hospital Gustavo Filho, na zona norte do Rio de Janeiro, entre os anos 1950 e 1960. Entrou no hospício por vontade própria, mas denunciari­a depois as más condições do tratamento psiquiátri­co.

Foi pela angústia dos eletrochoq­ues que teria tido o seu episódio mais extremo. Numa noite de abril de 1972, estrangulo­u e matou uma interna da clínica Dr. Eiras, em Botafogo. Diria a um médico que queria mudar de hospital e imaginava que o crime a levaria a um manicômio judiciário.

O processo jurídico sobre o caso, no qual ela foi considerad­a inimputáve­l, descreve a autora como alguém carente, que teatraliza­va os fatos para chamar a atenção. Em dado trecho, cita declaraçõe­s da própria escritora: “Não sei o caminho a seguir, minha inadaptaçã­o à vida é total, faltame contato com as pessoas”.

“Acho que o assassinat­o colaborou para ela cair num esquecimen­to”, diz Sergio Módena, que dirige a versão teatral. “Ela parou de escrever e, se continuass­e, poderia ter tido uma obra imensa.”

Mas é muito consciente seu relato em “Hospício É Deus”. “Ela fala coisas ao mesmo tempo desconcert­antes e lúdicas, sempre com uma ironia com ela mesma”, comenta Padilha.

Lopes Cançado sempre tentou compreende­r sua loucura. Em contrapont­o com a rígida formação religiosa, ela se voltou em dado momento a estudos místicos, do zen-budismo à doutrina secreta da paranormal russa Madame Blavatsky. Seus surtos, ela definia como uma “fase crepuscula­r”.

“O que atravessa toda a trajetória dela é um sentido libertário, que ela expressa muito na literatura, embora esteja carregada de tristeza”, lembra a pesquisado­ra Célia Musilli.

Em seu mestrado “Literatura e Loucura: a Transcendê­ncia pela Palavra”, concluído na Unicamp, ela enfatiza a linguagem de Lopes Cançado e trata da “escritora que também era louca”, em oposição à figura da “louca que escrevia”, como a autora ficou conhecida.

Musilli destaca ainda um caráter bastante visual e surrealist­a da linguagem da escritora, em especial no segundo livro dela, a coletânea de contos “O Sofredor do Ver”.

“Acho que ali é quando ela se revela a grande autora que foi —e ela tem uma obra magistral, mais dia menos dia seria redescober­ta. O diário [‘Hospício’] não parece a escrita de uma pessoa louca, é muito lúcido. Mas nos contos ela transborda, borra as linguagens.”

Como fazia com as verdades e delírios de sua vida, lembra a pesquisado­ra. “Não dá para ter certeza de tudo o que aconteceu com ela. Maura era dessas pessoas que flutuam.”

Diários do Abismo

Centro Cultural Banco do Brasil, r. Primeiro de Março, 66, Rio. Qui. a seg., às 19h30. Estreia em 13/9. Até 5/11. Ingr.: R$ 30. 12 anos

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Odyr/cpdocJB A escritora Maura Lopes Cançado com cópias de seu livro ‘Hospício É Deus’
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Fernando Young/Divulgação Maria Padilha estreia ‘Diários do Abismo’, adaptação de ‘Hospício É Deus’

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