Algoritmos são promessa de exames mais assertivos
Startups e grandes empresas se unem a instituições de saúde para o uso de ferramentas de inteligência artificial
A inteligência artificial pode elevar as chances de cura de pessoas com câncer por meio de diagnósticos e tratamentos mais precisos. No Brasil, startups e gigantes da informática têm se unido a instituições de saúde para testar suas tecnologias.
A Onkos, de Ribeirão Preto (SP), uma das pioneiras no uso de inteligência artificial em diagnósticos moleculares no país, criou um exame capaz de descobrir a origem de um tumor que já se espalhou. Isso é importante para oferecer a medicação mais adequada ao doente, já que as células cancerosas, em geral, permanecem iguais à origem.
No exame, feito a partir de uma biópsia, a inteligência artificial compara o comportamento de genes a um banco de dados com amostras de 4.429 pacientes. Os algoritmos indicam com qual tumor há maior semelhança. “É como a polícia procurando um bandido: ela colhe a impressão digital na cena do crime e cruza com um banco de dados para encontrar quem tem aquele perfil”, diz o biólogo Marcos Tadeu dos Santos, da Onkos.
O teste ganhou o Prêmio Octavio Frias de Oliveira deste ano na categoria Inovação Tecnológica em Oncologia. Mas ainda é para poucos. É oferecido a R$ 5.000 pelo laboratório Fleury, parceiro na tecnologia, com o Hospital de Câncer de Barretos e a Universidade Federal do Maranhão.
“Todo exame molecular é caro. A forma de baratear é ter volume”, afirma Santos, que é fundador da startup Onkos.
O oncologista brasileiro Gilberto Lopes, professor da Universidade de Miami (EUA), afirma que é preciso verificar se a iniciativa, “bem-vinda”, trará ganho real aos pacientes, ajudando-os a viver mais.
Também em parceria com o Hospital do Câncer de Barretos, a startup lançou, em março, um teste para detectar se um nódulo de tireoide é benigno ou maligno, quando o resultado da punção feita no paciente dá “indeterminado”.
O exame analisa o material genético da pessoa e, em seguida, os algoritmos classificam se o padrão se assemelha a nódulo maligno ou benigno. O intuito é evitar cirurgia desnecessária, como a que faria a veterinária Maria Alcina Martins, 40.
Com um nódulo “indeterminado”, ela chegou a marcar a cirurgia mas cancelou ao descobrir a existência de um novo teste —que apontou benignidade.
A inteligência artificial também pode ser usada para indicar, em segundos, o tratamento mais efetivo para cada tipo de tumor em cada indivíduo.
Desenvolvida pela IBM, a tecnologia Watson for Oncology cruza os dados do paciente, inseridos pelo médico, com artigos científicos e registros de casos já tratados, fornecidos por instituições. O conteúdo tem curadoria do Memorial Sloan Kettering, nos EUA, referência em câncer.
“Para um profissional ficar atualizado em oncologia, teria que estudar 29 horas aodia. A ferramenta dá a ele uma quantidade enorme de informações já mastigadas”, diz Fabio Mattoso, líder do Watson Health no Brasil.
O Instituto do Câncer do Ceará, em Fortaleza, usa a tecnologia desde 2017 para “garantir desempenho no desenho de linhas de cuidado personalizadas e melhor custoefetividade do tratamento”, segundo o epidemiologista Hermano Alexandre Rocha, gestor do Watson for Oncology na instituição.
Mas, na comunidade médica, há dúvidas sobre a assertividade do Watson. Em julho, o boletim norte-americano de saúde Stat informou que o sistema pode sugerir condutas inseguras. A IBM nega.
No Brasil, a Microsoft desenvolve plataforma de lógica semelhante, em parceria com o Centro de Estudos Sociedade e Tecnologia da Universidade de São Paulo e o Grupo Oncoclínicas.
“O uso da inteligência artificial na prática ainda é uma promessa. No futuro vai trazer a possibilidade de o tratamento ser mais assertivo para cada paciente”, diz o administrador Luis Natel, diretor do Oncoclínicas.
Para Lopes, da Universidade de Miami, o potencial é enorme, mas companhias tentam vender serviços ainda sem testes e validação adequados.
“Hospitais ao redor do mundo que acolheram essas novas tecnologias muitas vezes o fazem por puro marketing”.
De acordo com o oncologista, há ainda poucos estudos no Brasil sobre o tema e um número restrito de medicamentos anticâncer disponíveis à população. “Com isso, o benefício atual é muito pequeno.”
Predizer o risco da incidência de doenças graves é um desafio científico desde os textos atribuídos a Hipócrates no século 5 a.C.
Há muito se reconhece que os fatores que levam ao óbito são multicausais e apresentam interações complexas, envolvendo determinantes comportamentais, sociais, fisiológicos, genéticos e demográficos —relação muitas vezes imperceptível para a mente humana.
Encontrar padrões nos dados para auxiliar na tomada de decisão é a especialidade dos modelos preditivos de inteligência artificial (machine learning), o que explica o seu crescente uso em saúde nos últimos anos.
Avanços publicados no último ano incluem a capacidade de predizer a evolução de tumores específicos e a identificação de agrupamentos de câncer suscetíveis a tratamentos semelhantes.
No Laboratório de Big Data e Análise Preditiva em Saúde (LABDAPS) da Faculdade de Saúde Pública da USP desenvolvemos, em colaboração com médicos de hospitais de São Paulo, algoritmos de inteligência artificial para auxiliar em problemas da prática clínica, como a predição da qualidade de vida de pacientes com câncer.
Segundo pesquisa de 2016 do Instituto Datafolha, receber um diagnóstico da doença é a maior preocupação de saúde para 65% dos brasileiros. Esse medo não é infundado, já que uma análise recente do Instituto Nacional do Câncer (Inca) projetou que em 2018 cerca de 582 mil brasileiros serão diagnosticados com a doença.
O diagnóstico precoce é fundamental para aumentar a sobrevida. Segundo o instituto Cancer Research UK, organização independente de pesquisa, cerca de 80% dos pacientes com câncer de pulmão sobrevivem mais de um ano se diagnosticados em estágios iniciais —contra 15% em estágios mais avançados.
No câncer de mama o efeito é maior: 90% das mulheres diagnosticadas em estágio inicial terão sobrevida acima de cinco anos; em estágios avançados, 15% ultrapassam os cinco anos.
À medida que mais dados de qualidade sejam coletados, maior é o potencial de que algoritmos consigam aprender padrões novos e mais complexos. Isso irá auxiliar médicos a tomarem decisões, aumentando a sobrevida e a qualidade de vida dos pacientes.
O Brasil tem um imenso potencial para auxiliar o resto do mundo a melhorar as decisões no tratamento do câncer. A nossa diversidade genética e socioeconômica tem gerado interesse em pesquisadores do mundo todo.
A medicina de precisão, um fenômeno em ascensão guiado pela inteligência artificial, depende da diversidade e da qualidade dos dados. Atualmente no Brasil temos uma grande diversidade de dados, mas ainda estamos muito atrás em relação à qualidade da informação.
Para que seja possível desenvolver algoritmos de qualidade, será necessário conseguir acompanhar a trajetória dos pacientes ao longo de todo o sistema de saúde, desde as consultas e diagnósticos até a internação e, eventualmente, ao óbito.
Esses dados permitirão que pesquisadores desenvolvam algoritmos que consigam predizer a ocorrência de pontos de inflexão relevantes para o sistema, como o risco de internações.
Experiências de outros países mostram que é possível garantir a anonimidade dos dados e a privacidade dos pacientes, com ganhos inestimáveis para a saúde pública.
Uma parceria entre o sistema de saúde da Inglaterra (NHS) e a DeepMind, empresa de inteligência artificial do Google, permitiu a análise de dados públicos para auxiliar no diagnóstico de 50 tipos de doenças oculares. Os resultados apontam para uma acurácia de 94% dos algoritmos, o que pode trazer benefícios para 285 milhões de pessoas no mundo que sofrem com perda de visão.
Estamos ainda nos primeiros passos de uma longa caminhada em que a inteligência artificial irá transformar quase todas as profissões e áreas da economia. É o momento de direcionar projetos ambiciosos para a área, como muitos países têm feito.
No início do ano, a China anunciou investimentos bilionários com o objetivo de se tornar líder mundial em inteligência artificial até 2025. Em março, o presidente francês, Emmanuel Macron, também anunciou que o país investirá US$ 1,8 bilhão (R$ 7,5 bilhões) na área até 2022.
Deixar passar o bonde da inteligência artificial pode significar perder o bonde da história. Esses algoritmos irão melhorar a tomada de decisão clínica em todas as etapas do sistema de saúde. Os mais de meio milhão de brasileiros que serão diagnosticados com câncer em 2018 contam com isso.