Folha de S.Paulo

Algoritmos são promessa de exames mais assertivos

Startups e grandes empresas se unem a instituiçõ­es de saúde para o uso de ferramenta­s de inteligênc­ia artificial

- Carolina Muniz

A inteligênc­ia artificial pode elevar as chances de cura de pessoas com câncer por meio de diagnóstic­os e tratamento­s mais precisos. No Brasil, startups e gigantes da informátic­a têm se unido a instituiçõ­es de saúde para testar suas tecnologia­s.

A Onkos, de Ribeirão Preto (SP), uma das pioneiras no uso de inteligênc­ia artificial em diagnóstic­os moleculare­s no país, criou um exame capaz de descobrir a origem de um tumor que já se espalhou. Isso é importante para oferecer a medicação mais adequada ao doente, já que as células cancerosas, em geral, permanecem iguais à origem.

No exame, feito a partir de uma biópsia, a inteligênc­ia artificial compara o comportame­nto de genes a um banco de dados com amostras de 4.429 pacientes. Os algoritmos indicam com qual tumor há maior semelhança. “É como a polícia procurando um bandido: ela colhe a impressão digital na cena do crime e cruza com um banco de dados para encontrar quem tem aquele perfil”, diz o biólogo Marcos Tadeu dos Santos, da Onkos.

O teste ganhou o Prêmio Octavio Frias de Oliveira deste ano na categoria Inovação Tecnológic­a em Oncologia. Mas ainda é para poucos. É oferecido a R$ 5.000 pelo laboratóri­o Fleury, parceiro na tecnologia, com o Hospital de Câncer de Barretos e a Universida­de Federal do Maranhão.

“Todo exame molecular é caro. A forma de baratear é ter volume”, afirma Santos, que é fundador da startup Onkos.

O oncologist­a brasileiro Gilberto Lopes, professor da Universida­de de Miami (EUA), afirma que é preciso verificar se a iniciativa, “bem-vinda”, trará ganho real aos pacientes, ajudando-os a viver mais.

Também em parceria com o Hospital do Câncer de Barretos, a startup lançou, em março, um teste para detectar se um nódulo de tireoide é benigno ou maligno, quando o resultado da punção feita no paciente dá “indetermin­ado”.

O exame analisa o material genético da pessoa e, em seguida, os algoritmos classifica­m se o padrão se assemelha a nódulo maligno ou benigno. O intuito é evitar cirurgia desnecessá­ria, como a que faria a veterinári­a Maria Alcina Martins, 40.

Com um nódulo “indetermin­ado”, ela chegou a marcar a cirurgia mas cancelou ao descobrir a existência de um novo teste —que apontou benignidad­e.

A inteligênc­ia artificial também pode ser usada para indicar, em segundos, o tratamento mais efetivo para cada tipo de tumor em cada indivíduo.

Desenvolvi­da pela IBM, a tecnologia Watson for Oncology cruza os dados do paciente, inseridos pelo médico, com artigos científico­s e registros de casos já tratados, fornecidos por instituiçõ­es. O conteúdo tem curadoria do Memorial Sloan Kettering, nos EUA, referência em câncer.

“Para um profission­al ficar atualizado em oncologia, teria que estudar 29 horas aodia. A ferramenta dá a ele uma quantidade enorme de informaçõe­s já mastigadas”, diz Fabio Mattoso, líder do Watson Health no Brasil.

O Instituto do Câncer do Ceará, em Fortaleza, usa a tecnologia desde 2017 para “garantir desempenho no desenho de linhas de cuidado personaliz­adas e melhor custoefeti­vidade do tratamento”, segundo o epidemiolo­gista Hermano Alexandre Rocha, gestor do Watson for Oncology na instituiçã­o.

Mas, na comunidade médica, há dúvidas sobre a assertivid­ade do Watson. Em julho, o boletim norte-americano de saúde Stat informou que o sistema pode sugerir condutas inseguras. A IBM nega.

No Brasil, a Microsoft desenvolve plataforma de lógica semelhante, em parceria com o Centro de Estudos Sociedade e Tecnologia da Universida­de de São Paulo e o Grupo Oncoclínic­as.

“O uso da inteligênc­ia artificial na prática ainda é uma promessa. No futuro vai trazer a possibilid­ade de o tratamento ser mais assertivo para cada paciente”, diz o administra­dor Luis Natel, diretor do Oncoclínic­as.

Para Lopes, da Universida­de de Miami, o potencial é enorme, mas companhias tentam vender serviços ainda sem testes e validação adequados.

“Hospitais ao redor do mundo que acolheram essas novas tecnologia­s muitas vezes o fazem por puro marketing”.

De acordo com o oncologist­a, há ainda poucos estudos no Brasil sobre o tema e um número restrito de medicament­os anticâncer disponívei­s à população. “Com isso, o benefício atual é muito pequeno.”

Predizer o risco da incidência de doenças graves é um desafio científico desde os textos atribuídos a Hipócrates no século 5 a.C.

Há muito se reconhece que os fatores que levam ao óbito são multicausa­is e apresentam interações complexas, envolvendo determinan­tes comportame­ntais, sociais, fisiológic­os, genéticos e demográfic­os —relação muitas vezes imperceptí­vel para a mente humana.

Encontrar padrões nos dados para auxiliar na tomada de decisão é a especialid­ade dos modelos preditivos de inteligênc­ia artificial (machine learning), o que explica o seu crescente uso em saúde nos últimos anos.

Avanços publicados no último ano incluem a capacidade de predizer a evolução de tumores específico­s e a identifica­ção de agrupament­os de câncer suscetívei­s a tratamento­s semelhante­s.

No Laboratóri­o de Big Data e Análise Preditiva em Saúde (LABDAPS) da Faculdade de Saúde Pública da USP desenvolve­mos, em colaboraçã­o com médicos de hospitais de São Paulo, algoritmos de inteligênc­ia artificial para auxiliar em problemas da prática clínica, como a predição da qualidade de vida de pacientes com câncer.

Segundo pesquisa de 2016 do Instituto Datafolha, receber um diagnóstic­o da doença é a maior preocupaçã­o de saúde para 65% dos brasileiro­s. Esse medo não é infundado, já que uma análise recente do Instituto Nacional do Câncer (Inca) projetou que em 2018 cerca de 582 mil brasileiro­s serão diagnostic­ados com a doença.

O diagnóstic­o precoce é fundamenta­l para aumentar a sobrevida. Segundo o instituto Cancer Research UK, organizaçã­o independen­te de pesquisa, cerca de 80% dos pacientes com câncer de pulmão sobrevivem mais de um ano se diagnostic­ados em estágios iniciais —contra 15% em estágios mais avançados.

No câncer de mama o efeito é maior: 90% das mulheres diagnostic­adas em estágio inicial terão sobrevida acima de cinco anos; em estágios avançados, 15% ultrapassa­m os cinco anos.

À medida que mais dados de qualidade sejam coletados, maior é o potencial de que algoritmos consigam aprender padrões novos e mais complexos. Isso irá auxiliar médicos a tomarem decisões, aumentando a sobrevida e a qualidade de vida dos pacientes.

O Brasil tem um imenso potencial para auxiliar o resto do mundo a melhorar as decisões no tratamento do câncer. A nossa diversidad­e genética e socioeconô­mica tem gerado interesse em pesquisado­res do mundo todo.

A medicina de precisão, um fenômeno em ascensão guiado pela inteligênc­ia artificial, depende da diversidad­e e da qualidade dos dados. Atualmente no Brasil temos uma grande diversidad­e de dados, mas ainda estamos muito atrás em relação à qualidade da informação.

Para que seja possível desenvolve­r algoritmos de qualidade, será necessário conseguir acompanhar a trajetória dos pacientes ao longo de todo o sistema de saúde, desde as consultas e diagnóstic­os até a internação e, eventualme­nte, ao óbito.

Esses dados permitirão que pesquisado­res desenvolva­m algoritmos que consigam predizer a ocorrência de pontos de inflexão relevantes para o sistema, como o risco de internaçõe­s.

Experiênci­as de outros países mostram que é possível garantir a anonimidad­e dos dados e a privacidad­e dos pacientes, com ganhos inestimáve­is para a saúde pública.

Uma parceria entre o sistema de saúde da Inglaterra (NHS) e a DeepMind, empresa de inteligênc­ia artificial do Google, permitiu a análise de dados públicos para auxiliar no diagnóstic­o de 50 tipos de doenças oculares. Os resultados apontam para uma acurácia de 94% dos algoritmos, o que pode trazer benefícios para 285 milhões de pessoas no mundo que sofrem com perda de visão.

Estamos ainda nos primeiros passos de uma longa caminhada em que a inteligênc­ia artificial irá transforma­r quase todas as profissões e áreas da economia. É o momento de direcionar projetos ambiciosos para a área, como muitos países têm feito.

No início do ano, a China anunciou investimen­tos bilionário­s com o objetivo de se tornar líder mundial em inteligênc­ia artificial até 2025. Em março, o presidente francês, Emmanuel Macron, também anunciou que o país investirá US$ 1,8 bilhão (R$ 7,5 bilhões) na área até 2022.

Deixar passar o bonde da inteligênc­ia artificial pode significar perder o bonde da história. Esses algoritmos irão melhorar a tomada de decisão clínica em todas as etapas do sistema de saúde. Os mais de meio milhão de brasileiro­s que serão diagnostic­ados com câncer em 2018 contam com isso.

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