Folha de S.Paulo

Autorrefer­ente, moda dos EUA tece crítica à intolerânc­ia em desfiles de NY

Estilistas se inspiram nos estereótip­os do povo americano na abertura do circuito internacio­nal

- Pedro Diniz

“Isto é América”, cantaria Childish Gambino se tivesse de resumir a temporada verão 2019 da semana de moda de Nova York. O hit homônimo do rapper versa sobre o história de violência encrustada nas raízes do “american dream” e é crítica objetiva à política de intolerânc­ia do governo Trump.

Nos desfiles mais relevantes da cidade que inicia o circuito internacio­nal, os estilistas se debruçaram sobre os estereótip­os da imagem do povo americano, um raio-x que vai do meio-oeste Ralph Lauren a uma Miami Michael Kors.

Ponto de interseção dos guarda-roupas de democratas como Hillary Clinton, republican­os como a primeira-dama Melania Trump e caubóis modernos que ainda usam chapéu de abas largas, Lauren revisitou signos da indumentár­ia nos EUA que embalam a história da grife.

Sob os olhares de amigos que vão da apresentad­ora Oprah Winfrey ao próprio casal Clinton, Ralph Lauren desfilou os 50 anos de sua marca no Central Park, costurando sua trajetória com base na roupa dos imigrantes italianos até seu “Ivy Look”, conjuntos de blazer sobre suéteres de tweed, baseado no armário das universida­des da elite norte-americana.

Os tipos “western”, as camisetas polo, as bermudas, os cachecóis em zigue-zague. Lauren explorou todos esses elementos em modelos que desfilavam em pares ou abraçadas a crianças, como se mostrassem um ideal de família americana rica e de cores de pele diversas, frutos de uma miscigenaç­ão cada vez mais distante nos EUA da era Trump.

As influência­s latinas, das cores fortes dos florais aos vestidos de camadas, apareceram em vários desfiles, como na estreia de Wes Gordon na Carolina Herrera e na coleção berrante de Michael Kors.

Kors arrisca derrubar os muros que separam as culturas latina e anglo-saxônica ao apostar em referência­s às cores que tingem a parte mais ao sul do continente.

Tomara-que-caia, babados e franjas adornam propostas para garotas de diferentes corpos e etnias que frequentam regiões costeiras, da Flórida à Califórnia. É como se a grife carioca Farm —que, aliás, aposta na mesma estética em sua nova incursão no mercado americano—tivesse baixado na passarela do estilista.

Queridinho dos free shops, Kors investe num ideal de luxo acessível e kitsh, cheio de tops e jaquetas estampadas para dias de sol mais felizes.

Sol que Tory Burch, outra instituiçã­o da moda americana, parece ter tomado para um passeio pelos Hamptons, destino da elite nova-iorquina. A “white party” da designer tem códigos do despojamen­to francês, abotoado até o pescoço, de linhas retas e cartela monocromát­ica.

Há caftãs, vestidos longos de mangas bufantes e acessórios com pinta de souver- nirs de um passeio pelo Mediterrân­eo —Grécia, Itália e Espanha inspiraram a estilista.

Burch resume a imagem idealizada de um verão elegante, distante do caos das praias dos surfistas do oeste.

É na mesma Nova Inglaterra, na parte nordeste dos EUA, que o belga Raf Simons tirou as inspiraçõe­s da apresentaç­ão mais forte desta temporada nova-iorquina. Mas em vez de uma festa branca, ele promove um banho de sangue que é metáfora da escalada de violência no país.

A região é cenário do filme “Tubarão”, de Steven Spielberg, que teve pôster aplicado em camisetas da coleção, desfilada sobre um tapete vermelho-sangue. Ao fundo, projeções do mar faziam os convidados mergulhare­m na tese do estilista que, desde a entrada na marca, ironiza os costumes do país onde vive.

Simons propôs uma fusão do look do surfista, os mesmos do longa de 1975, e o dos bailes de formatura dos filmes blockbuste­r dos 1990.

Como se dissesse que o sonho americano morreu na praia, abocanhado por um tubarão sentado na Casa Branca, ele rasgou as saias plissadas dos modelos, alguns molhados e ainda usando seus chapéus de formando.

Outra obra-prima do cinema, “A Primeira Noite de um Homem”, de Mike Nichols, serviu de base para o personagem de formando imaturo e perdido em meio à pressão de se tornar homem.

Calças de neoprene e jaquetas de couro com franjas vermelhas como se espirrasse­m sangue compuseram parte da imagem agressiva proposta pela Calvin Klein.

É como se a marca tivesse pintado um retrato da juventude desencanta­da, saudosa da vida blockbuste­r que lhe prometeram e não se concretizo­u. Simons joga a real e lhe responde: isto é América.

 ?? Andrew Kelly/Reuters ?? Passarela do estilista Raf Simons no desfile da Calvin Klein, na semana de moda de Nova York
Andrew Kelly/Reuters Passarela do estilista Raf Simons no desfile da Calvin Klein, na semana de moda de Nova York
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Richard Drew/AP
 ?? Bebeto Matthews ?? No alto, look de balneário do desfile de Tory Burch; acima, da esq. para a dir., proposta de Michael Kors e conjunto da coleção de Ralph Lauren
Bebeto Matthews No alto, look de balneário do desfile de Tory Burch; acima, da esq. para a dir., proposta de Michael Kors e conjunto da coleção de Ralph Lauren
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Shannon Stapleton/Reuters

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