Folha de S.Paulo

Longa iraniano faz estudo sobre ética, responsabi­lidade e culpa

‘Sem Data, Sem Assinatura’ estreia hoje com o drama ‘Uma Questão Pessoal’ e a ação ‘22 Milhas’

- Bruno Ghetti Fotos Divulgação

O cinema iraniano é prodigioso em cenas de diálogo em automóveis. Dispositiv­o dramático, aliás, bastante arguto: em um carro, personagen­s podem falar com liberdade (o que, no Irã, nem sempre é possível fora dali). Também é um local que sugere intimidade e em que uma conversa flui bem, já que as pessoas não precisam se olhar nos olhos.

O longa iraniano “Sem Data, Sem Assinatura” segue essa tradição persa, com várias conversas dentro de um veículo, explorando com destreza as possibilid­ades permitidas por essa situação. Mas o grande interesse do diretor Vahid Jalilvand é por outro procedimen­to também muito usual no cinema de seu país: discutir posturas éticas.

Faz isso por meio de Kaveh, médico que atropela uma moto por acidente. Fere o filho do motociclis­ta no pescoço, mas presta socorro e se tranquiliz­a ao verificar que ele passa bem. No dia seguinte, um susto: o garoto surge morto.

A autópsia aponta intoxicaçã­o alimentar, mas Kaveh acha que pode ter sido a pancada. Resolve, então, investigar o que vitimou a criança.

Kaveh não é um santo. É até um sujeito ríspido, sobretudo com mulheres (outra tradição local, ao menos em alguns meios no Irã). Mas sabe o peso do que pode ter feito e aceita assumir sua eventual responsabi­lidade.

O roteiro é engenhoso: cada atitude dos personagen­s gera sérias implicaçõe­s, às vezes compromete­ndo terceiros. O filme sublinha o quanto atos humanos, mesmo irrisórios, podem ter consequênc­ias.

Jalilvand é capaz de cenas memoráveis. Quando o pai urra pelo filho morto, o que se vê não é mais um homem, mas um animal em desespero. Pena que o diretor por vezes se deslumbre demais com o que ele próprio encena.

Mas Jalilvand faz um bom estudo sobre culpa e aceitação de responsabi­lidade. O código de conduta do Irã atual nem sempre ajuda, mas muitos iranianos parecem dispostos a se tornar mais empáticos. E, ao mostrar isso, o filme se insere em outra notável tradição do cinema de seu país: a do humanismo.

Inácio Araujo

Quem pretender julgar “Uma Questão Pessoal” pela história que conta corre o risco de fazer mau juízo —nos dois sentidos.

Afinal, se quiser exigir verossimil­hança o espectador poderá se perguntar qual o sentido de o jovem Milton correr de um lado para o outro, em plena Resistênci­a, na Itália, durante a guerra. Milton corre riscos e coloca os combates entre parênteses apenas para encontrar seu amigo Giorgio, preso pelos fascistas.

Esse é o erro de julgar os filmes pelas histórias que contam. É por trás delas que tudo se define. E aqui o que existe é a história de uma casa: num primeiro momento, o país já está em guerra, mas não eles. É uma casa cheia de vida. Milton está apaixonado pela bela Fúlvia, porém não sabe se Fúlvia ama o amigo Giorgio.

Logo, eles já estão entre os resistente­s, Fúlvia foi para longe. Certa madrugada, Milton avista a casa. Agora vazia, ou quase: ao buscá-la o que ele busca realmente é memória. Esse retorno realimenta suas dúvidas de amante.

Pouco depois, Giorgio é preso. Então, Milton inicia sua jornada em busca de um fascista a quem possa trocar pelo amigo. Mas pergunta-se: será que quer salvar o amigo devido à amizade que os une ou para saber o que aconteceu entre Giorgio e Fúlvia? Ou ambos?

Existe ainda um terceiro momento em que se pode ver a casa, quando está ocupada pelos fascistas. Não é mais a casa da beleza, da juventude: é apenas um lugar funesto, conspurcad­o.

O sentido estético apurado dos Taviani continua intacto. Sua capacidade de integrar os personagen­s e a paisagem, de evocar uma época pelas transições da paisagem, de fixar o que uma árvore, uma neblina têm a contar sobre a história: tudo isso resiste ao tempo e fala da maestria dos Taviani.

Pode não ser um “Pai, Patrão” ou um “Bom Dia Babilônia”, mas ainda vive o vigor dessa dupla inseparáve­l. Ou antes, separada apenas pela doença e pela morte, já que, se assinam o roteiro em conjunto, por uma vez coube apenas a Paolo Taviani a assinatura na direção. O irmão, Vittorio, siamês cinematogr­áfico, morreria pouco depois de concluído o filme. Mas não será errado dizer que esse é o último filme dos Irmãos Taviani.

Sérgio Alpendre

Cortes a cada dois ou três segundos, câmera inquieta e propositad­amente indecisa, ambientes escuros com um grande foco de luz: você já viu esse filme inúmeras vezes, e raramente foi animador.

Assim é “22 Milhas”, de Peter Berg (“O Dia do Atentado”), que parece ter se especializ­ado em filmes de ação com direção indigente e Mark Wahlberg no máximo da canastrice.

22 milhas é o que um grupo de elite paramilita­r precisa percorrer, numa cidade do sudeste asiático, para chegar com segurança à zona de embarque para os EUA, para levar um agente duplo que se recusa a passar um código secreto.

É claro que há mais gente de olho nesse agente, o que torna a missão do grupo liderado por James Silva (Wahlberg) mais difícil, incluindo aí uma verdadeira guerrilha urbana.

Trabalhar com muitos cortes não é um problema caso o diretor tenha aprendido a lição de Sergei Eisenstein e outros soviéticos. Para eles, a imagem vista lá atrás ainda deve ser lembrada após várias outras imagens, pois havia um cuidado na composição e na sucessão dessas imagens.

Em Peter Berg e outros diretores de ação, não importa que imagem está sendo cortada. Impera a noção de dinamismo pela montagem, noção que precisa de cuidados, frequentem­ente ignorados.

Além do cuidado com a junção dessas imagens, não faz sentido a insistente troca de ângulos, como se simulasse uma reportagem policial. Isso procura disfarçar uma incapacida­de de colocar a câmera no melhor lugar possível. Coloca-se em vários, e geralmente equivoca-se em todos.

O que era para ser uma ótima cena de luta num hospital, caso estivesse num filme de John Woo, vira uma bagunça irritante em “22 Milhas”.

E aí, na metade da projeção, qualquer esperança de que o filme melhore vai por água abaixo. Pior ainda que um ator como John Malkovich seja desperdiça­do como um agente com falas óbvias.

Quando é o desleixo que está no comando, mesmo uma boa história cai por terra. A de “22 Milhas” então, que opera em terreno já muito pisado, fica difícil salvar.

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Longa iraniano ‘Sem Data, Sem Assinatura’, de Vahid Jalilvand, se insere na tradição humanista do cinema do país
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Em ‘Uma Questão Pessoal’, sentido estético apurado dos irmãos Taviani continua intacto

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