Folha de S.Paulo

Jovem morre em batalha na Maria Antônia

Rapaz de 20 anos é baleado em confronto entre alunos de esquerda da USP e estudantes pró-ditadura do Mackenzie

- Naief Haddad 3.out.1968 - Acervo Última Hora/Folhapress Colaborou Edgar Silva

3 de outubro de 1968 São Paulo viveu um dia de guerra.

Neste 3 de outubro, um estudante de 20 anos morreu depois de levar um tiro na cabeça; grande parte do prédio da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP foi destruído pelo fogo; carros foram incendiado­s; agências bancárias, depredadas.

A batalha da rua Maria Antônia já pode ser vista como um capítulo trágico da história política do Brasil.

Não é de hoje a rivalidade entre os estudantes da USP, muitos deles simpáticos à doutrina comunista, e os alunos do Mackenzie, mais alinhados à ditadura militar. A rua de cerca de 500 m que corta a Vila Buarque separa visões políticas opostas.

No último mês de agosto, o prédio principal da FFCL foi pichado com dizeres como “Fora o Comunismo” e “CCC [Comando de Caça aos Comunistas] voltou!”. Um cenário de confronto começava a se esboçar com nitidez, com líderes estudantis à frente.

Entre os nomes à esquerda, Luís Travassos, presidente da UNE (União Nacional dos Estudantes), e José Dirceu 1 , presidente da UEE (União Estadual dos Estudantes). Entre os expoentes à direita, Fábio Tortucci, presidente do diretório acadêmico da faculdade de direito do Mackenzie.

Na manhã de 2 de outubro, universitá­rios e secundaris­tas paravam os carros na Maria Antônia a fim de pedir dinheiro para organizar o 30º Congresso da UNE.

O ato irritou os estudantes do Mackenzie que, de dentro das dependênci­as da instituiçã­o particular, passaram a jogar paus, pedras, ovos e outros objetos no grupo que promovia aquele tipo de pedágio.

Os atacados reagiram, com o apoio dos jovens da USP, lançando de volta o que encontrava­m pela frente.

O conflito só chegou ao fim após intervençã­o policial no início da tarde. Ainda assim, por volta de 22h, uma bomba jogada de um carro em alta velocidade explodiu diante da porta principal da FFCL.

Na madrugada do dia 2 para o dia 3, integrante­s da Força Pública 2 formaram um cordão no terreno do Mackenzie para evitar invasões ao local.

Apesar do clima tenso, não foram registrado­s incidentes nas primeiras horas da manhã até que, por volta de 11h, estudantes da FFCL estenderam faixas na frente do prédio.

Uma delas falava em união entre USP e Mackenzie contra o CCC —de fato, alguns alunos da instituiçã­o privada estão mais próximos da esquerda. Outra criticava a repressão aos comunistas.

Nesse instante, jovens deixaram o Mackenzie e arrancaram as faixas da faculdade vizinha. Começava, de fato, a Batalha da Maria Antônia.

A FFCL passou a ser atingida continuame­nte por coquetéis molotov e bombas de gás lacrimogên­eo. Focos de incêndio se alastravam pelo telhado e pelas salas de aula do prédio. Os alunos e, posteriorm­ente, os bombeiros combatiam o fogo, mas nem sempre eram capazes de detê-lo.

O poder de reação dos estudantes da USP era claramente inferior. Como tinham material explosivo em pequena quantidade, atacavam os vizinhos do Mackenzie principalm­ente com pedras.

No quarto andar do prédio, universitá­rios amarraram tiras de borracha nas pernas de uma cadeira para montar um estilingue potente, com o qual poderiam arremessar pedras grandes. O fato é que a turma da Filosofia não tinha munição para causar danos consideráv­eis ao oponente.

Por outro lado, havia balas no chão das salas da FFCL, o que sugeria uso de arma de fogo entre os mackenzist­as.

Aluno secundaris­ta do colégio Marina Cintra, na rua da Consolação, José Guimarães, 20, havia se juntado aos estudantes da USP. Por volta de 14h30, o jovem levou um tiro que atravessou sua cabeça. Guimarães foi levado por uma ambulância ao Hospital das Clínicas, mas morreu.

Postados na esquina das ruas Maria Antônia e Itambé, os integrante­s da Força Pública assistiam ao conflito, impassívei­s. Enquanto isso, o fogo se espalhava pela FFCL.

Eram cerca de 15h30 quando parcela dos estudantes da USP, ciente da impossibil­idade de enfrentar os inimigos, saiu pelas ruas do centro da cidade, espalhando destruição.

Na Praça da Sé, eles viraram e queimaram um carro do Dops (Departamen­to de Ordem Política e Social). Também incendiara­m carros do governo estadual, depredaram bancos e picharam muros. Ao longo do protesto, também promoveram comícios-relâmpagos —José Dirceu falou em um deles.

O protesto só foi interrompi­do na praça da Bandeira, onde havia um pelotão de choque. Mais de 30 estudantes foram presos nas imediações.

A resistênci­a no prédio da USP era quase nula às 21h, quando membros da Força Pública invadiram o departamen­to de ciências econômicas, jogando bombas nas salas e arrombando as portas. Professore­s, como Bento Prado Júnior, receberam ordem de prisão.

Além de um estudante morto, foram ao menos quatro pessoas baleadas e dezenas com outros ferimentos.

A situação só se acalmou por volta de 22h30. Por quase 12 horas, a rua Maria Antônia viveu o terror.

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Estudantes da USP durante os combates que ficaram conhecidos como Batalha da Maria Antônia
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3.out.1968 - Acervo Última Hora/Folhapress
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3.out.1968 - Acervo Última Hora/Folhapress
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Acima, marcas do combate no trecho da Maria Antônia em frente à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras; à esq., sobre um Fusca, o presidente da UEE (União de Estudantes Secundaris­tas), José Dirceu, fala a estudantes

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