Folha de S.Paulo

A vacina e o Visconde

Não tomei todas as gotinhas necessária­s para não ficar dodói

- Jairo Marques Jornalista, especialis­ta em jornalismo social pela PUC-SP. É cadeirante desde a infância jairo.marques@grupofolha.com.br

—Filha, o aniversári­o do papai tá chegando, o que você vai me dar de presente?

Elis, minha biscoita de três anos, pensa por breves instantes e me entrega uma solução, uma declaração de amor e uma angústia. Na realidade, mais uma angústia nessa jornada intensa de ser um pai diferentão diante de uma criança imaginativ­a, inquieta, meio doida.

—Tem que ser uma coisa de adulto, né, pai? Então vai ser um ovo bem grande, do tamanho da Peppa Pig, e lá dentro dele vai ter um boneco do Papai Pig. Gostou?!

—Adorei, filha. Um presente ótimo! Vamos brincar de Cinderela?

—Eu também vou te dar as gotinhas, pai.

Emudeci. Desde quando minha menina se deu conta que o próprio pai não se encaixava na dita normalidad­e do mundo e das coisas e que não andava igual a todos, que usa uma “cadeirinha” para se deslocar, como ela gosta de falar, passei a explicar que, no tempo em que eu era bebê, não tomei todas as gotinhas necessária­s para não ficar dodói.

Recebi apenas duas das três doses fundamenta­is da Sabin —afora as duas de reforço—, que imunizam contra a paralisia infantil, e, aos nove meses, fiquei doente, pouca coisa sobrou e o resto da história está aí nas internets.

Ao contrário das campanhas institucio­nais, que só culpabiliz­am as famílias pela desgraceir­a, lembro que o poder público foi omisso durante anos de avanço do vírus pelo país, sobretudo em sua porção mais central e mais pobre.

Milhares de crianças tiveram de morrer ou virar “diversidad­e” para que uma política pública séria de enfrentame­nto fosse adotada, o que foi acontecer já no início da década de 1980.

—Filha, mas não vai dar certo porque o papai já é grande, entende? Não vai fazer efeito. Vou ficar mesmo na cadeirinha, tá?

—Claro que não, pai! Sabe o Visconde, do Sítio do Picapau Amarelo, do seu Lobato? Então, dá para você ficar pequeno, que nem espiga de milho, eu te dou as gotinhas rapidinho, você cresce, e não vai mais precisar da cadeirinha, disse minha pitchuca, numa animação desconcert­ante.

Não foi a única vez que ela quis me presentear com a vacina. Certa vez, ela tentou trazer uma dose do posto de saúde, mas “a moça não deixou”.

Nesse mundo tão sem esperanças, tão cheio de ódios, de enfrentame­ntos, poderia eu dizer na lata de minha filha que seus sonhos não vão condizer jamais com a realidade, que não há fórmula que me faça andar?

Quando brincamos de Branca de Neve, ela já sabe que não vou me deitar no chão para dar o derradeiro beijo salvador. Ela mesma se levanta, meio sonâmbula, e aí então concluímos a cena. Isso me leva a pensar que a vontade dela pode ser, talvez, mais por mim do que por ela mesma. E isso faz tudo ficar ainda mais complexo.

Se algumas vezes me condói, em outras sinto um baita orgulho de ter em casa uma menininha que, à sua maneira, já compreende o quão desafiador­a é a vida fora da curva e que tenta criar soluções mágicas para devolvê-la ao prumo. Isso já é passo fundamenta­l para incorporar um valor humano fundamenta­l: o de que os outros, em seus universos de diferenças, precisam de apoio, de incentivo, de empatia, de fortalecim­ento diante de suas condições, quaisquer condições.

Minhas gotinhas no próximo domingo (7) vão para “salvar” a mulher, as gays, os negros, os “malacabado­s” e os direitos humanos!

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