Folha de S.Paulo

Modelo de ‘A Origem do Mundo’ era cortesã

Bailarina Constance Quéniaux atuou na Ópera de Paris sem grande destaque, mas foi uma filantropa respeitáve­l

- Lucas Neves

Cento e cinquenta e dois anos perdurou o anonimato da mulher sem cabeça do célebre quadro “A Origem do Mundo” (1866), de Gustave Courbet (1819-1877).

Aquela cujas coxas, o ventre, o contorno de um seio e, sobretudo, o sexo causaram furor nas altas rodas da Paris oitocentis­ta —mas também nas redes sociais do século 21, onde sua imagem foi censurada sete anos atrás— acaba de ganhar um rosto convincent­e.

É o de Constance Quéniaux (1832-1908), bailarina da Ópera de Paris mais tarde conhecida pela atuação na filantropi­a. A revelação está em “L’Origine du monde, vie du modèle”, ensaio de Claude Schopp a ser lançado neste mês.

O retrato que o autor esboça dela é o de uma artista mediana. “Não era uma estrela, seu nome não saía nos jornais da época, não sobreviveu à história”, diz Schopp à Folha.

Segundo ele, Constance não hesitou em oferecer carinhos a senhores ilustrados em troca de afagos materiais.

Forçada a pendurar as sapatilhas após uma década por causa de lesões, não arreda pé dos círculos da boêmia. Compõe o “entourage” do compositor Esprit Auber e, pouco a pouco, envolve-se em ações de caridade, voltadas ora para crianças órfãs de artistas, ora para surdos e cegos.

No fim da vida, tem apartament­o em Paris e casa no sofisticad­o balneário de Cabourg, na Normandia, onde ganha prêmios pelo projeto paisagísti­co do seu jardim. “Seu passado de cortesã é esquecido e ela vira uma figura respeitáve­l”, diz Schopp.

Cena distinta da de sua origem, na pequena Saint-Quentin, polo têxtil do norte da França em que foi criada sozinha por uma mãe iletrada.

Até aqui, achava-se que a mulher retratada por Courbet na tela que virou um marco da pintura realista poderia ser a irlandesa Joanna Hiffernan, modelo recorrente do pintor à época, além de amante dele.

Mas o cabelo ruivo não condizia com o marrom escuro dos pelos pubianos pintados .

Eis que, cerca de um ano e meio atrás, pesquisand­o a correspond­ência entre os escritores Alexandre Dumas filho (1824-95) e George Sand, pseudônimo de Amandine Dupin (1804-76), Schopp leu uma menção cifrada à bailarina.

“Não se pinta nem com o pincel mais delicado e sonoro a entrevista da senhorita Queniault [sic]”, escrevia o primeiro à segunda.

Estranhand­o que uma modelo tenha sido retratada pelo pintor durante uma entrevista, Schopp consultou a carta original, de 1871, guardada na Biblioteca Nacional da França.

Descobriu então que Dumas, à época brigado com Courbet, aludira na verdade ao “interior” de Quéniaux.

Dumas tratava Coubert como um depravado, um monstro imoral. Na época da carta, o escritor —que, na década de 1850, tornara-se célebre justamente por um romance ambientado no mundo da prostituiç­ão, ainda que tratada com verniz romântico— conduzia uma espécie de campanha contra o meretrício, visto por ele como epítome da decadência francesa.

Para Dumas, “A Origem do Mundo” tomava ares de gênese de todo mal.

 ?? Bibliothèq­ue Nationale de France/Divulgação ?? Retrato Constance Quéniaux, bailarina da Ópera de Paris, que serviu de modelo para “A Origem do Mundo”, de Gustave Courbet e marco da pintura realista
Bibliothèq­ue Nationale de France/Divulgação Retrato Constance Quéniaux, bailarina da Ópera de Paris, que serviu de modelo para “A Origem do Mundo”, de Gustave Courbet e marco da pintura realista
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil