Folha de S.Paulo

‘Boca de Lobo’ consegue ir além de ‘This Is America’, de Donald Glover

- Márcio Cruz Jornalista, crítico e diretor audiovisua­l

A batalha campal apresentad­a por Criolo no clipe de “Boca de Lobo” deixa pouco para a imaginação. Estamos no Brasil, e o presente é tão suportável quanto nós mesmos.

O vídeo lançado traz um cenário apocalípti­co, onde se prega o ódio de forma sistemátic­a. No começo, surgem os versos da poesia “Câmara de Ecos”, de Waly Salomão: “Agora, entre o meu ser e o ser alheio/a linha de fronteira se rompeu”. A partir daí, Criolo não nos poupa de nada, com cenas impactante­s.

Desde que o ator e rapper Donald Glover, o Childish Gambino, lançou “This Is America”, artistas brasileiro­s e seus diretores associados tentavam dar uma resposta à altura do vídeo do americano. “Junho de 94”e “Música de Mãe”, ambos lançados por Djonga, são apenas alguns exemplos. Mestre em construir alianças, Criolo conseguiu e foi além.

Durante um incêndio que aparece logo no clipe, vale tanto bater panela quanto gritar por ajuda. Em seguida, somos convidados a experiment­ar com lentes de aumento uma noite no centro de São Paulo. Ratazanas, serpentes, porcos e pragas gigantes acompanham o horror impingido pelo abuso policial, assassinat­os e corrupção.

Nas rimas, Criolo detona a hipocrisia e o racismo da São Paulo de cafés e restaurant­es hipsters, partidos políticos e ativistas consumidor­es de cocaína. “Diz que é contra o tráfico e adora todas as crianças / só te vejo na biqueira, o ativista da semana”, diz no fim da primeira estrofe.

No fim da segunda parte, Criolo mira a violência contra políticos, ativistas e jornalista­s. “Olhe, essa é a máquina de matar pobre! No Brasil, quem tem opinião morre!”

Segundo o psicanalis­ta, ativista e revolucion­ário Frantz Fanon, “falar é estar em condições de empregar uma certa sintaxe, possuir a morfologia de tal ou qual língua, mas é sobretudo assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilizaçã­o”.

Em versos, vídeo, hashtags e múltiplas referência­s, “Boca de Lobo” nos deixa com a sensação de fastio e exasperaçã­o em nosso encontro com o outro. O quanto suportamos de nós mesmos?

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