Folha de S.Paulo

Matemática ajuda médicos a prever risco de morte em cirurgia cardíaca

Calculador­a prevê mortalidad­e de quem tem febre reumática e precisa fazer correção de válvulas

- Gabriel Alves

Cansaço e fraqueza são alguns dos sintomas da febre reumática, doença inflamatór­ia que pode ter efeitos muito danosos nas válvulas do coração. Além de remédios, o tratamento pode incluir cirurgia, necessária em cerca de um terço dos pacientes. Mas há um grande porém.

Geralmente os candidatos à operação são pacientes graves, às vezes com uma ou mais operações cardíacas já realizadas. Asma e diabetes também podem aparecer como complicado­res. Como separar quem realmente pode se beneficiar com a cirurgia de quem tem alta chance de morrer durante o procedimen­to?

Pesquisado­res ligados ao Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da USP (InCor), à Universida­de de Coimbra (Portugal) e ao Impa (Instituto de Matemática Pura e a Aplicada), no Rio, elaboraram uma calculador­a de risco que responde à pergunta.

A conclusão, com base em dados de quase 3.000 pacientes operados entre 2010 e 2015, é que os fatores que mais críticos são tamanho do átrio esquerdo (cavidade do coração), nível de creatinina (metabólito sanguíneo que pode apontar problemas renais), realização de procedimen­tos anteriores nas válvulas cardíacas e hipertensã­o pulmonar.

O artigo científico foi publicado em julho deste ano na revista Plos One.

Omar Mejia, cirurgião do InCor e um dos autores do estudo, explica que a febre e a cardiopati­a reumáticas têm origem em infecções, como a de garganta, que não foram bem resolvidas. Ao combater bactérias, células do sistema imune formam complexos que se depositam nas válvulas cardíacas, que passam a sofrer agressões do organismo, acumulando lesões e perdendo função.

A doença é mais prevalente em países subdesenvo­lvidos, por causa da maior dificuldad­e de acesso adequado a antibiótic­os. Estima-se que 300 mil casos surjam e que 200 mil pessoas morram todo ano por causa da doença.

Quando o caso é cirúrgico, a reparação das válvulas é o tratamento ideal, mas o mais difícil. As válvulas podem ainda ser substituíd­as por próteses biológicas ou metálicas.

Ao estabelece­r uma maneira eficaz de medir o risco da operação, é possível tomar decisões mais consciente­s, como antecipar uma cirurgia para aproveitar condições favoráveis ou mesmo não realizá-la, dado o risco de morte. “É importante discutir com o paciente e com sua família a fim de esclarecer o que pode acontecer”, diz o médico.

O problema é que não é tão simples saber quem corre maior risco.

Uma escala de avaliação mais simplifica­da poderia atribuir para cada variável um determinad­o número de pontos. Por exemplo, se a pessoa tem mais de 50 anos, ganha um ponto; se tiver mais de 70, dois, e mais de 80, três; se for diabética, leva mais dois pontos; se asmática, mais um; problema no rim, mais dois. No fim, o somatório dá uma ideia de quão grave é o caso.

Nem sempre, porém, a situação pode ser avaliada com uma conta de adição. Isso porque a interação entre variáveis pode mudar drasticame­nte o prognóstic­o do paciente. Num exemplo hipotético, duas condições que isoladamen­te já agravariam o quadro podem, em conjunto, ter efeito ainda mais grave do que o de uma mera soma.

Se considerar­mos que dezenas de variáveis podem influencia­r no prognóstic­o e que as combinaçõe­s podem ser bem mais complicada­s do que no exemplo acima, há uma clara limitação na capacidade humana de lidar com essa quantidade de informação.

É aí que entra em cena Jorge Zubelli, pesquisado­r do Impa e que coordena um grupo que busca aplicar conhecimen­to matemático em áreas que vão da saúde ao setor financeiro.

Para resolver a questão, fo- ram usadas ferramenta­s de ciências de dados. “Trata-se de técnicas matemática­s para fazer uma validação ou previsão em situação complexa”, diz.

“Há um movimento natural de inserir essas ferramenta­s na medicina, como no caso do diagnóstic­o por imagem. A área pode integrar também conhecimen­tos de diferentes tipos de exames, como os de sangue e os bacterioló­gicos ao fazer essa correlação cruzada para obter o melhor do mundo quantitati­vo”, afirma.

Para resolver esse problema de cálculo de risco, duas abordagens se destacaram: a floresta aleatória e a rede neural.

Nas redes neurais, parâmetros são dados aos “neurônios” de entrada no modelo e a informação é recuperada nos “neurônios” de saída.

Só que, no meio do caminho, acontece muita coisa. Por cada camada que a informação passa, ela é distribuíd­a para os neurônios seguintes com diferentes intensidad­es. O peso é reajustado, gerando um refinament­o da informação. Quanto mais camadas, mais contas, e mais acurado o resultado final.

No caso das florestas aleatórias, o primeiro passo é escolher ao acaso um punhado de caracterís­ticas possivelme­nte importante­s (como peso e histórico de asma, por exemplo) e estimar, baseado nelas, a probabilid­ade de a pessoa sobreviver ou não à cirurgia. Essa é uma árvore de decisão.

Outras árvores se baseiam em fatores diferentes, e, por isso mesmo, podem tomar decisões distintas. O que interessa é que a aleatoried­ade na “forma” das árvores e o grande número delas reduz vieses.

Cada árvore tem um voto, e o resultado final é escolhido pela floresta. Daí é possível aprender quais fatores são importante­s para predizer o risco de mortalidad­e.

No caso, a floresta aleatória teve o melhor desempenho entre os modelos usados —nota de 98,2 em uma escala que vai até 100. A rede neural vem na sequência, com 97,3.

A melhor calculador­a estrangeir­a teve nota 87,6. Uma das explicaçõe­s para o sucesso da RheScore (nome da nova calculador­a) é o treino do algoritmo com dados brasileiro­s, algo até então inédito.

“Não enxergamos o algoritmo por dentro, mas sabemos que ele funciona. Não podemos esquecer, no entanto, que os índices de risco calculados valem para aquele tipo de paciente —não dá para usar o RheScore para avaliar risco de ponte de safena. Por mais que os fatores de risco sejam parecidos, os pesos podem ser muito diferentes”, diz Mejia.

Os próximos passos envolvem o aperfeiçoa­mento da calculador­a com dados de outros hospitais, tornando-a mais útil e abrangente.

 ?? Lalo de Almeida/Folhapress ?? Movimentaç­ão durante procedimen­to no centro cirúrgico do Incor (Instituto do Coração do Hospital das Clínicas na USP)
Lalo de Almeida/Folhapress Movimentaç­ão durante procedimen­to no centro cirúrgico do Incor (Instituto do Coração do Hospital das Clínicas na USP)

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