Folha de S.Paulo

Eterno retorno

Apelar às reservas como fonte de financiame­nto é replicar mecanismos fracassado­s

- Alexandre Schwartsma­n Consultor, ex-diretor do Banco Central (2003-2006). É doutor pela Universida­de da Califórnia em Berkeley aschwartsm­an@gmail.com

Já nos livramos do mediocrérr­imo Ciro Gomes, mas algumas de suas propostas ainda nos assombram, como o uso das reservas internacio­nais para financiar obras no país, também apropriada pela agenda econômica de Fernando Haddad.

Parece, à primeira vista, um negócio para lá de razoável, mas não sobrevive a 27 segundos de reflexão séria.

Há, de fato, quem defenda que o país detém hoje mais dólares do que precisaria para manter suas contas externas em ordem caso sobrevenha nova crise internacio­nal. Sou agnóstico a esse respeito, mas, como ponto de partida, podemos admitir que seja verdade. Nesse caso, o que deveríamos fazer com o presumido excesso de reservas, no programa estimado em US$ 40 bilhões?

Dado que as reservas nos rendem 2% ao ano, enquanto pagamos 6,5% ao ano sobre nossa dívida interna, uma das possibilid­ades seria vender a parcela excedente e usar o dinheiro para reduzir a dívida e o pagamento de juros sobre ela. No câmbio atual, US$ 40 bilhões permitiria­m reduzir a dívida do governo em R$ 150 bilhões, de 77,3% do PIB para 75,1% do PIB, cortando nossa conta de juros em quase R$ 7 bilhões/ano (4,5% ao ano sobre R$ 150 bilhões).

Alternativ­amente, poderíamos adotar a agenda petista e emprestar o dinheiro aqui dentro, em vez de usá-lo para reduzir o endividame­nto do governo. Para que essa escolha seja superior, precisará render mais que a economia de juros resultante da opção de abater a dívida. Isso significa que os gestores dos recursos retirados das reservas terão que empregá-los em projetos cujo retorno seja maior do que o custo da dívida, nosso custo de oportunida­de no presente contexto.

Isso nos leva a duas consideraç­ões. A mais geral é que, se existissem tais projetos, nada impediria que o setor privado usasse seus próprios recursos, não os do Tesouro.

A réplica habitual a essa crítica aponta para alguma hipotética falha de mercado, supostamen­te corrigida por meio da cobrança de juros abaixo dos pagos pelo Tesouro Nacional, como foi feito de forma avassalado­ra pelo BNDES entre 2008 e 2014.

Naquele período, empréstimo­s do BNDES saltaram de pouco mais de R$ 300 bilhões para R$ 800 bilhões (a preços de hoje), uma transferên­cia maciça de recursos para empresário­s bem conectados, que gozaram do benefício devidament­e apelidado de Bolsa Empresário, bem mais generoso que o Bolsa Família, com resultados conhecidos.

Deve ficar claro, pois, que se trata de alternativ­a inferior à redução do endividame­nto, dado que o retorno nesse caso é, por construção, inferior ao custo da dívida.

A segunda consideraç­ão diz respeito ao gerenciame­nto da bolada. Quem garante que os incentivos serão os corretos ou se, a exemplo do ocorrido com o BNDES, o dinheiro será direcionad­o por critérios não relacionad­os à eficiência econômica, mas determinad­os por causas nada republican­as, como financiame­nto de um projeto de poder, na forma de recursos para campanhas, “construção” de maiorias parlamenta­res e outros aspectos da corrupção que assola o país?

A bem da verdade, apelar às reservas internacio­nais como fonte de financiame­nto é apenas um disfarce. Trata-se, em última análise, de replicar os mesmos mecanismos usados à exaustão pela assim chamada Nova Matriz Econômica, cujo legado ainda pagamos, muito provavelme­nte com o mesmo grau de fracasso.

Posso apostar que, ao escrever sobre o eterno retorno, não era isto o que Nietzsche tinha em mente.

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