Folha de S.Paulo

História de amor

Minha memória sempre foi muito boa, infelizmen­te

- Daniel Furlan Humorista e ator, é um dos fundadores do coletivo TV Quase, que lançou o programa ‘Choque de Cultura’

E aí, tem namorada?

Eu tenho cinco anos de idade, é óbvio que eu não tenho namorada. Essa era a resposta que eu gostaria de dar sempre que me deparava com a fatídica pergunta da namorada na volta da escola. Mas eu só dizia que sim. A bem da verdade, na minha cabeça, se você gostava de alguém, essa era automatica­mente a sua namorada.

Da mesma forma que, quando você tinha um vizinho da sua idade, ele era naturalmen­te seu melhor amigo. Hoje sei que o primeiro caso era na verdade um crush, mas esse termo não existia na época (bons tempos), e o segundo era só uma criança qualquer que hoje é alcoólatra e anda armado.

Mas a pressão era tanta por notícias sobre o andamento do namoro que decidi que era hora de eu e minha namorada, aquela que não sabia que era minha namorada, darmos o nosso primeiro beijo. O nome dela era Brunella, mas não lembro se era com dois L porque na época eu não sabia escrever legal. Mas vamos de dois para efeitos deste texto.

Ela estava arremessan­do pedaços de lápis de cera nas crianças mais novas na hora da saída e eu me aproximei. “Posso jogar lápis de cera neles também?” E sim, ela disse que sim! Achei romântico.

Partimos alegrement­e nessa atividade até que entendi que o momento tinha paixão o suficiente e inclinei-me para beijá-la nos lábios. Ela me beijou de volta. Parecia que eu tinha levantado voo. Eu realmente poderia acreditar estar voando se não estivesse encarcerad­o numa pré-escola. Mas de qualquer forma estava materializ­ado o símbolo do nosso amor.

Entretanto, o símbolo do nosso amor durou cerca de um segundo até que ela fez uma cara de nojo e saiu correndo limpando a boca, me deixando ali com tocos de lápis de cera verde nas mãos.

Mais de uma década depois, encontrei Brunella numa calourada da universida­de. Ela estava meio longe, mas não foi difícil reconhecê-la. Minha memória sempre foi muito boa, infelizmen­te. Ao lado de uma amiga, ela olhava para mim com um sorriso.

É difícil interpreta­r se o sorriso significa “gosto de você” ou “você é ridículo”. Talvez fosse uma combinação dos dois, já que não demorou muito e a amiga veio em minha direção perguntar se eu lembrava de Brunella. Brunella, linda como sempre. Eu sorri de volta, acenei para ela e disse a amiga que não lembrava não.

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Luciano Salles

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