Folha de S.Paulo

Carga política e temor eleitoral marcam a Mostra de Cinema

Temor eleitoral e carga política marcam filmes da Mostra de SP, que começa nesta semana com total de 315 obras na programaçã­o

- Guilherme Genestreti Fotos Divulgação

As eleições insuflam uma névoa de paranoia sobre uma fazenda gaúcha. Ali, entre espetos de carneiro e taças de espumante, a matriarca espezinha o caseiro, o filho de meia-idade pratica tiro ao alvo e o neto adolescent­e quer deflorar a filha da empregada. Esperam aturdidos a posse do novo presidente, a sacudir aquele mundinho.

“Domingo”, drama dirigido por Fellipe Barbosa e Clara Linhart, ganhará um timing curioso ao estrear no Brasil durante a Mostra de São Paulo, que começa nesta quinta-feira. Embora o longa trate de outro pleito, o que levou Lula ao Planalto em 2003, é impossível assistir a ele sem pensar em Haddad e Bolsonaro.

O filme engrossa uma seleção de 315 produções, boa parte carregada de voltagem política. “Não tinha como ser diferente”, diz Renata de Almeida, diretora do festival paulistano. “O cinema tem algo de jornalísti­co e reflete o que está acontecend­o no mundo todo.”

A primeira versão do roteiro de “Domingo” foi escrita por Lucas Paraizo em 2005, na euforia do primeiro mandato do PT. “De lá para cá, sempre que a história era retomada, ganhava significad­o distinto por causa do momento do país”, diz Linhart. “Quando filmamos, em 2017, não imaginávam­os que seria lançado em uma hora tão conturbada.”

Os motes do filme são atemporais, pincelados com olhar freyriano sobre as relações entre elite e proletaria­do (não à toa, Fellipe Barbosa lançou em 2014 um drama social com o nome de “Casa Grande”).

Em “Domingo”, patrões e empregados jantam em ambientes separados –os primeiros temem “a invasão dos sem-terra” que está por vir, os outros ouvem com alento o discurso de posse de Lula em TVs perto da tábua de passar roupas.

“A família de patrões representa um Brasil reacionári­o e profundo”, segundo a diretora. “O pânico que sentem, como o pânico que existe hoje, é reflexo do fosso social que o país não conseguiu resolver.” Na França, onde o filme já estreou, a imprensa aborda a ascensão do direitista Bolsonaro ao discutir o novo longa.

O diretor Jorge Furtado é outro que comparece com um filme com ressonânci­a política. “Rasga Coração” é uma adaptação da peça homônima de Oduvaldo Vianna Filho, escrita na ditadura militar, atualizada com o contexto das manifestaç­ões de junho de 2013.

Mais conhecido pelos cômicos “O Homem que Copiava”, de 2003, e “Meu Tio Matou um Cara”, do ano seguinte, o diretor gaúcho afirma que “fazer chorar no Brasil hoje é bem simples”. “Talvez seja mais difícil fazer comédia agora”, diz.

Nesse novo drama de Furtado, Marco Ricca vive um ex-militante de esquerda confrontad­o pelo filho, vivido por Chay Suede, que não crê na política tradiciona­l. A cisão dentro da ala progressis­ta, que tanto tem pautado a eleição presidenci­al, reverbera nos debates entre os personagen­s.

Até o vulto de Karl Marx, que anda desancado em um dos eixos da atual polarizaçã­o, dá as caras com a homenagem que o festival faz aos 200 anos de seu nascimento. Trazer o nome dele numa era de debates superficia­is soa quase heresia. “Mas não precisa ser marxista para reconhecer a importânci­a da visão dele”, afirma a organizado­ra da Mostra de SP.

“Marx Reloaded” é um documentár­io que mistura animação e entrevista­s para examinar a crise econômica de 2008 à luz das ideias do pensador alemão. “Um Dia na Sepultura de Karl Marx” tenta traçar um panorama de suas propostas a partir das visões dos que visitam seu túmulo londrino.

O diretor Alexander Kluge aplica o ideário marxista sob a chave da ficção em “Trabalhos Ocasionais de uma Escrava”, a respeito de uma mãe que faz jornada dupla e se engaja em lutas sociais.

Do israelense Amos Gitai, o festival paulistano exibe dois filmes, entre eles o documentár­io “Uma Carta para um Amigo em Gaza”, que remexe no vespeiro da autonomia palestina e da facção radical Hamas a partir de trechos da obra do autor Albert Camus.

Donald Trump e a América de tensão racial cada vez mais aguda são evocados em “Infiltrado na Klan”, de Spike Lee.

A trama dessa dramédia falla da investigaç­ão conduzida por um policial negro que nos anos 1970 conseguiu se enfiar entre os membros da organizaçã­o racista Ku Klux Klan. O diretor costura um fio narrativo entre a seita e a omissão do presidente republican­o diante da marcha de supremacis­tas brancos em Charlottes­ville.

Se nas telas os cineastas expelem suas visões políticas, outros deles pagam por suas opiniões nos bastidores. Ambos impedidos de deixar os seus países de origem, o iraniano Jafar Panahi e o russo Kirill Serebrenni­kov têm seus dois filmes mais recentes exibidos na programaçã­o.

Filmado em segredo, “3 Faces” é um retrato do provincian­ismo e do machismo no Oriente Médio que se desenrola a partir da história de uma garota proibida pelos pais de seguir na carreira de atriz. Panahi é um notório crítico ao regime iraniano e foi condenado a ficar 20 anos sem filmar.

Já “Verão”, do diretor russo, trata de uma banda de rock que irrompeu na atual São Petersburg­o durante décadas derradeira­s da União Soviética. Embora Serebrenni­kov cumpra pena de prisão por crime fiscal, há quem veja motivação política em seu encarceram­ento graças às posições do cineasta, contrário à anexação da Crimeia e a favor de direitos LGBT no país.

Para Renata, a Mostra vai na contramão das correntes de WhatsApp e dos textões de Facebook, tão em voga. “O cinema está aí pra te fazer passar duas horas ouvindo uma opinião que é diferente da sua.”

 ??  ?? Entusiasta­s da organizaçã­o racista Ku Klux Klan queimam uma cruz em cena de ‘Infiltrado na Klan’, novo longa de Spike Lee que é destaque da Mostra de Cinema de SP
Entusiasta­s da organizaçã­o racista Ku Klux Klan queimam uma cruz em cena de ‘Infiltrado na Klan’, novo longa de Spike Lee que é destaque da Mostra de Cinema de SP
 ??  ?? Cena do filme ‘Verão’, do russo Kirill Serebrenni­kov
Cena do filme ‘Verão’, do russo Kirill Serebrenni­kov
 ??  ?? Camila Morgado e Ismael Caneppele no filme ‘Domingo’
Camila Morgado e Ismael Caneppele no filme ‘Domingo’
 ??  ?? Alexandra Kluge em ‘Trabalhos Ocasionais de uma Escrava’
Alexandra Kluge em ‘Trabalhos Ocasionais de uma Escrava’
 ??  ?? Marco Ricca e Drica Moraes em cena de ‘Rasga Coração’
Marco Ricca e Drica Moraes em cena de ‘Rasga Coração’

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