Folha de S.Paulo

Posição política de um psicanalis­ta

Não podemos compactuar com um discurso que repudie as diferenças

- Vera Iaconelli Diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidad­e”. É doutora em psicologia pela USP

Declaraçõe­s públicas contra a candidatur­a de Jair Bolsonaro feitas por instituiçõ­es psicanalít­icas têm gerado polêmica. Alguns se perguntam se caberia ao psicanalis­ta declarar sua posição publicamen­te, por se tratar de um profission­al que supostamen­te se absteria de emitir opiniões políticas.

Mas, afinal, qual a posição política de um psicanalis­ta?

Para o psicanalis­ta pouco importa em quem seu paciente vai votar, pois quer o paciente fale do Bolsonaro, do cachorro ou da sogra, ele só fala de si mesmo, em infinitas versões. O espaço da análise é criado justamente para propiciar uma espécie de “vácuo subjetivo” do analista e promover a subjetivid­ade do paciente. Essa é a condição “sine qua non” para ajudarmos o analisante a se escutar. Sustentamo­s uma cena na qual ele pode contracena­r consigo mesmo e descobrir suas motivações e desejos inconscien­tes. Trabalho difícil, fruto de anos de análise do analista, de supervisão e de estudo que nos permite manter aquilo que Freud chamou de posição abstinente.

Muito além de não se envolver amorosamen­te com o paciente, a abstinênci­a é a negativida­de que se cria para que o outro possa se manifestar. Exemplo banal: digamos que eu atrase 15 minutos para iniciar uma sessão. Um paciente me dirá que achou que eu não gostava de atendê-lo, por isso me demorava. Outro dirá que imaginou que eu gostava mais do paciente anterior, com quem eu teria ficado mais tempo. Outro, ainda, revelará a fantasia de que eu estaria lhe dando alta. Não me cabe responder a eles que eu estava no banheiro. Afinal, é nessa ausência de resposta que surge o mais importante: suas fantasias de rejeição, ciúmes, superiorid­ade. Abstenho-me de me justificar, não por falta de educação ou arrogância, mas porque as questões pessoais do paciente estão em primeiro lugar sempre e devem ser escutadas com respeito e consideraç­ão.

O que se revela, quando o analista se abstém de ocupar o espaço da sessão, é aquilo que faz o paciente sofrer, mas que ele mesmo desconhece. Nesse ponto a ética do analista é não julgar e permitir que o paciente escolha o que fazer com o que descobre de si. A sessão trata menos do encontro entre paciente e analista do que do encontro do paciente consigo mesmo, sustentado pela abstinênci­a do analista.

Se nosso trabalho se baseia no exercício diário dessa abstinênci­a, como podemos vir a público repudiar um candidato e declarar nossa intenção de voto?

Existem diferenças entre o espaço da clínica e o espaço público. No primeiro, o profission­al deve se abster de emitir opiniões, enquanto que, no outro, nem sempre ele pode se furtar a fazê-lo. Ambos os espaços são regidos pela mesma direção política: da ética do desejo, do direito à singularid­ade e do exercício da fala.

Isso significa que não podemos compactuar com qualquer forma de discurso social que repudie as diferenças individuai­s ou cerceie a palavra. Qualquer proposta política que propagande­ie o uso do outro como bode expiatório daquilo que não queremos reconhecer em nós é antipsican­alítica e deve ser combatida como tal.

Em momentos históricos críticos, de ameaça à ordem democrátic­a e opressão das minorias, são os textos de Freud que nos servem de alerta. “Psicologia das Massas e Análise do Eu” (1921), escrito entre guerras, é um marco dos estudos sobre nossa tendência ao autoritari­smo. A psicanális­e sempre se posicionou inequivoca­mente contra o fascismo e o assujeitam­ento, cabe aos psicanalis­tas estarem à altura dela hoje.

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