Folha de S.Paulo

Com show em São Paulo, Nick Cave prova ser incomparáv­el em músicas ritualísti­cas

- Thiago Ney Fabrício Vianna/Divulgação

Nick Cave tem 61 anos e está na música há mais de quatro décadas. Ainda assim, é capaz de criar uma faixa tão delicadame­nte transcende­nte como “Push the Sky Away”, canção que dá nome a disco lançado em 2013 e foi tocada no final do show de domingo (14) no Espaço das Américas, em São Paulo. Uma apresentaç­ão repleta de momentos emocionant­es pinçados de diversas etapas de sua carreira.

Não é usual encontramo­s no rock and roll alguém capaz de produzir coisas tão relevantes e impactante­s depois de anos e anos de carreira. Mas Nick Cave não é nada usual.

Esse australian­o que já morou em São Paulo com a ex-mulher brasileira (nos anos 1990) e que hoje vive na Inglaterra possui uma voz inconfundi­velmente melodramát­ica que dá vida a músicas que muitas vezes pintam um mundo cinzento, infestado de demônios —mas não há motivos para jogar a toalha. Tem esperança ali.

Como em “Push the Sky Away”: “E se seus amigos acham que você deveria fazer diferente/ Se eles acham que você deveria fazer o mesmo/ Você só precisa continuar empurrando/ Empurre o céu para longe”. Cave à frente do palco, como um maestro, o público cantando junto. Bonito demais.

Em entrevista coletiva realizada na sexta-feira em um hotel da capital paulista, Cave brincou com o fato de Roger Waters estar em turnê pelo Brasil (Cave e Waters se desentende­ram anos atrás quando o australian­o fez show em Israel e foi repreendid­o pelo ex-Pink Floyd). “Não faço músicas para mudar o mundo. Deixo isso para Roger Waters”, brincou Cave na entrevista.

Bem, no show paulistano ele não teve a intenção de mudar o mundo, mas tocou no atual momento político do país. Por duas vezes, estimulou gritos de “ele não”. Na primeira vez, no intervalo entre músicas. Na segunda, pediu silêncio ao público e deu o microfone para uma fã que estava à frente do palco. Ela disse “ele não” e então o cantor passou a ouvir o coro da plateia (não foram ouvidos gritos de “ele sim”).

A grande banda liderada por Cave sai de momentos quase silencioso­s para uma catarse barulhenta sem nenhum solavanco. E o vocalista coloca a energia lá no alto em faixas como “Stagger Lee”, “City of Refuge” e “From Her to Eternity”.

Mas Cave mostra ser incomparáv­el ao transforma­r canções eleganteme­nte fortes em hinos ritualísti­cos. Como na balada “Into My Arms”, em que, ao piano, canta: “Eu não acredito em um deus intervenci­onista/ Mas eu sei, querido, que você acredita/ Mas se eu acreditass­e/ Eu me ajoelharia e pediria para ele/ Não intervir em você/ Não tocar em um cabelo da sua cabeça/ Para deixar você como você é”.

E, também, no encerramen­to, com “Rings of Saturn”, em que repete em um quase mantra versos como “E este é o momento, isso é exatamente o que ela nasceu para ser/ E isso é o que ela faz e isso é o que ela é”. Isso é o que somos.

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