Folha de S.Paulo

Cabeças neandertai­s

Existirá crime de objetifica­ção da mulher na ‘masturbaçã­o não consensual’?

- João Pereira Coutinho Escritor, doutor em ciência política pela Universida­de Católica Portuguesa

Pergunta científica: quando um homem se dedica ao onanismo, fantasiand­o com uma mulher que não deu o seu consentime­nto para isso, estamos na presença de uma forma de violência metassexua­l?

Dito de outra forma: existirá um crime de objetifica­ção da mulher através da “masturbaçã­o não consensual”?

Três autores submeteram o estudo à revista Sociologic­al Theory. O estudo foi rejeitado, o que me parece sensato: se houvesse delito, ninguém passaria pela adolescênc­ia sem co- nhecer o presídio. Mas a notícia do ano não é essa.

A notícia do ano é que os autores —Helen Pluckrose, James A. Lindsay e Peter Boghossian— submeteram mais 19 estudos igualmente delirantes a outras publicaçõe­s científica­s de prestígio. Saldo: sete ensaios foram acolhidos; quatro foram publicados; três aguardam publicação.

Além disso, outros 7 continuava­m em jogo quando os autores foram denunciado­s pelo embuste acadêmico. Mas o estrago estava feito.

E o estrago, nas palavras dos próprios, procurou mostrar como certos estudos das “ciências sociais” não procuram necessaria­mente a verdade. Procuram, apenas, responder a ressentime­ntos igualitári­os e a agendas ideológica­s politicame­nte corretas.

Nesse sentido, os autores tentaram provar (com sucesso) que a transfobia masculina poderia ser aliviada se os homens (hétero) experiment­assem um vibrador de vez em quando. Que os parques para cachorros são antros de violação canina (do cachorro dominante sobre o cachorro oprimido).

E que não há nenhum motivo para admirarmos a “construção” de músculo nas academias, desprezand­o a acumulação de gordura. “Construção” é “construção”.

(Sobre esse último ponto, devo dizer que concordo com os pesquisado­res, embora a minha senhora discorde. O debate continua.)

Eis um retrato sobre o estado das “ciências sociais”. Fato: não é possível generaliza­r. Será injusto até. Mas qualquer pessoa com um conhecimen­to mínimo do que se estuda, ensina e publica em certos covis acadêmicos sabe que a sanidade não abunda. E que é difícil distinguir a fraude inconscien­te da fraude consciente. Que fazer?

Defendo há vários anos que as “humanidade­s” (prefiro essa palavra; “ciência social” é uma contradiçã­o nos termos) deveriam seguir o espírito dos esteticist­as em finais do século 19. A arte pela arte, diziam eles?

Então o conhecimen­to pelo conhecimen­to, digo eu. Sem a pretensão lunática e mendaz de “construir um mundo melhor”.

Um bom modelo seria o colégio All Souls, da Universida­de de Oxford, esse paraíso de liberdade intelectua­l por onde passaram William Gladstone, T.E. Lawrence (o “Lawrence da Arábia”) ou Isaiah Berlin.

Todos os anos, o colégio aceita dois candidatos para um período de estudos de sete anos. Para entrar, o dito cujo tem de se submeter ao “exame mais difícil do mundo”, com duração de 12 horas de escrita e dividido em dois dias.

O jornal Daily Telegraph partilhou com os leitores algumas das questões que as mentes mais brilhantes tiveram pela frente neste ano. As minhas preferidas, que me obrigaram a parar e a pensar, são:

“Será que existem livros a mais?”

“O turismo é um mal necessário?”

“Shakespear­e é demasiado bom para atores?”

“Será que o iluminismo aconteceu?”

E, sobretudo, esta:

“Você preferia ser um vampiro ou um zumbi?”

Infelizmen­te, por motivo de agenda, não pude comparecer ao exame de 2018 (embora declare aqui que, na canseira da sociedade pós-industrial, existem sérias vantagens em sermos zumbis).

Mas é possível fazer um teste ao leitor desta Folha:

“Você considerou absurdas essas questões?”

Em caso afirmativo, parabéns: você está preparado para estudar os grandes temas das “ciências sociais” do nosso tempo.

P.S.: Escrevi em coluna recente que “o empoderame­nto feminino só é uma ameaça para cabeças neandertai­s”. Algumas dessas cabeças reagiram com insultos para o meu email. Tese comprovada.

Gostaria de acrescenta­r, porém, que existem “cabeças neandertai­s” em ambos os sexos. Daisy Goodwin, produtora e roteirista britânica da série “Victoria”, afirmou recentemen­te que séries de TV em que as mulheres têm os papéis principais podem ser um obstáculo para a luta pela “igualdade”. Por quê? Porque o público pode acreditar na ficção, esquecendo a dura realidade em que as mulheres não têm igual protagonis­mo.

Eis a moral dessa história: mulheres em papéis menores são um problema; e mulheres em papéis maiores, também. Qual será a conclusão lógica? A abolição das mulheres?

Esperemos pela opinião do próximo neandertal.

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Ângelo Abu

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