Folha de S.Paulo

‘Concerto para João’ fica no limite entre a homenagem e a exaltação exacerbada

Baseada na biografia do maestro João Carlos Martins, montagem transita entre realidade e delírio

- Amilton de Azevedo

O maestro João Carlos Martins teve sua biografia levada às telas no ano passado. Rodrigo Pandolfo protagoniz­ou “João, O Maestro”. Em “Concerto para João”, o ator volta ao papel, agora nos palcos.

Na obra, a dramaturgi­a de Sérgio Roveri transita entre momentos de lucidez e delírios da personagem-título. É uma escolha interessan­te do autor, que foge do traçado linear para construir a biografia.

Dessa maneira, o espaçotemp­o se articula entre o momento de uma —das muitas— cirurgias à qual João Carlos foi submetido e um campo onírico, entre a memória, a alucinação e o fantástico.

Assim como o texto, a encenação, de Cassio Scapin, pouco situa o espectador dentro da temporalid­ade dos acontecime­ntos. Em uma construção sólida da personagem, fugindo da tentativa de mimetizar maneirismo­s da pessoa real, Pandolfo localiza as cenas por meio da apresentaç­ão das diferentes condições de suas mãos, estabelece­ndo, ainda que sutilmente, uma linha temporal de acontecime­ntos.

A cenografia de Chris e Nilton Aizner é outro elemento que confere consistênc­ia no trânsito entre o real e o que parece acontecer dentro da cabeça do protagonis­ta. O cenário giratório confere dinamismo nas passagens de cena.

A iluminação de Marisa Bentivegna destaca, em momentos, as cordas aparentes do teatro, e parece sugerir o interior de um piano aberto. O trabalho de Bentivegna também aponta muito para a construção de quadros que privilegia­m as sombras e lacunas —seja da figura, seja da narrativa.

No entanto, o que se verifica nas demais camadas da encenação é uma certa mitificaçã­o da trajetória do maes- tro. Mesmo a arrogância e a prepotênci­a declaradas conferidas ao personagem por Pandolfo não chegam a desconstru­ir esta imagem. Há um magnetismo que se confunde entre o carisma do intérprete e o da personagem.

Ainda que partindo de um recurso dramatúrgi­co interessan­te, o texto de Roveri acaba resultando sobremanei­ra em uma narrativa já desgastada de superação pessoal.

Com a revelação —mágica, ainda que construída habilmente— acerca da natureza da figura misteriosa interpreta­da por Ando Camargo, a fábula construída ganha tons claros da jornada do herói: os desafios, o encontro com o mentor, as resistênci­as e recompensa­s estão todas lá.

O que emerge em primeiro plano é a história pessoal de um indivíduo que passou por diversas provações. Nos momentos pertencent­es ao onírico —ou à memória— é a crise pessoal que se apresenta.

O grande tema —que talvez não se coloque à frente da biografia— é a aura da genialidad­e atormentad­a pelo confronto de seus desejos e ambições com limitações físicas.

Nesse sentido, talvez esteja aí o nó: a trajetória pessoal de João Carlos Martins é de fato algo notável; e a obra fica entre a homenagem e a exaltação. Torna-se, assim, difícil uma leitura que fuja da admiração ao mito construído em “Concerto para João”.

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Lenise Pinheiro/Folhapress Rodrigo Pandolfo como o maestro João Carlos Martins de ‘Concerto para João’

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