Folha de S.Paulo

Apesar de Khashoggi, Trump não tem como romper com Riad

- Gideon Rachman Financial Times, com tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves

O desapareci­mento (e provável morte) de Khashoggi é uma tragédia e um mistério. Também é sério golpe à política dos EUA no Oriente Médio.

Na medida em que o governo Trump tinha uma estratégia para a região, ela se concentrav­a na Arábia Saudita e na figura instável de MBS.

O príncipe herdeiro saudita deveria ser o homem que formaria uma aliança contra o Irã, faria a paz com Israel, enfrentari­a o meio religioso em seu país e ajudaria a esmagar o Estado Islâmico. Segundo ele mesmo, também liberaliza­ria a sociedade saudita e transforma­ria a economia.

A centralida­de da Arábia Saudita para a visão de mundo de Trump foi salientada quando o presidente fez sua primeira visita oficial no exterior a Riad. MBS formou relacionam­ento estreito com Jared Kushner, genro de Trump.

A ofensiva de charme de MBS foi além dos Trump. O príncipe cortejou famosos jornalista­s ocidentais. Em uma viagem aos EUA, misturouse à realeza americana —Bill Gates, Mark Zuckerberg e Rupert Murdoch. No entanto, até parte do fã-clube do príncipe tinha reservas. MBS deveria ser considerad­o um visionário construtor de nações ou um déspota descontrol­ado?

Os que afirmavam que o líder saudita era, acima de tudo, perigoso tinham muitas evidências perturbado­ras: a guerra no Iêmen; uma disputa com o vizinho Qatar; a prisão temporária do primeiromi­nistro do Líbano; uma batida policial contra alguns dos empresário­s mais ricos do país; e a prisão de jornalista­s e ativistas de direitos humanos.

Mas, apesar de tudo isso, o senso comum nas Chancelari­as ocidentais continuou sendo que ele era “positivo”, embora um pouco impetuoso.

A decisão do príncipe de permitir que as mulheres dirigissem foi um golpe de mestre na batalha para influencia­r a opinião pública mundial. Sua aliança tácita com Israel para conter o Irã também foi essencial para mantê-lo nas boas graças da Casa Branca.

Mas o aparente assassinat­o de Khashoggi modificou as atitudes ocidentais. O príncipe claramente falhou em compreende­r o potencial impacto de um ato tão brutal e ousado.

Diferentem­ente das famílias iemenitas vítimas das bombas sauditas, Khashoggi tinha uma coluna no The Washington Post. A mídia americana está em polvorosa e o Congresso ameaça impor sanções.

No entanto, apesar de os EUA terem de descartar suas ilusões sobre MBS, não poderão modificar muito suas políticas. O reino é o maior exportador mundial de petróleo e o maior importador de armas.

Sem um bom relacionam­ento com a Arábia Saudita, a influência americana no Oriente Médio cairá ainda mais.

Diferentem­ente dos EUA, os russos hoje podem ostentar um sólido relacionam­ento com as principais potências regionais —incluindo Irã, Arábia Saudita, Israel, Egito e Turquia. Os EUA atualmente têm um conjunto muito mais limitado de relações. Washington cortou os canais com o Irã, e as relações com a Turquia continuarã­o abaladas. Se os EUA executarem as ameaças à Arábia Saudita, vão alienar países do Golfo, o que poderá deixá-los sem aliados próximos na região, exceto Israel.

É provável que o governo Trump faça o possível para limitar as consequênc­ias diplomátic­as do caso. Diante das duras realidades da “realpoliti­k”, é difícil culpá-los. Mas a ideia de que os EUA podem armar uma estratégia em torno da figura de MBS terá de ser abandonada. “Não deposite sua confiança em príncipes” sempre foi bom conselho.

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