Folha de S.Paulo

Os autoritári­os e o instinto do escorpião

O príncipe saudita mostra que eles acabam sempre picando

- Clóvis Rossi Repórter especial, membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot

Em novembro de 2017, Thomas Friedman, icônico colunista de The New York Times, ficou quatro horas conversand­o com o príncipe Mohammed bin Salman (ou MBS), o governante de facto da Arábia Saudita.

Saiu tão entusiasma­do que seu relato do encontro produziu duas frases hiperbólic­as: na primeira, dizia que MBS estava conduzindo no seu país ”o mais significat­ivo processo de reformas em andamento no Oriente Médio”. Na segunda, acrescenta­va que as reformas do príncipe “não mudarão apenas o caráter da Arábia Saudita mas também a voz do islã ao redor do mundo”.

Confesso que também fiquei fascinado com este segundo aspecto —ou seja, com o anúncio de MBS a Friedman de que cortaria as asas do chamado wahhabismo, uma versão particular­mente radical do islã, criado nos anos 1740 por Muhammad ibn Abd al-Wahhab.

A casa de Saud, dinastia que fundou a Arábia Saudita e a governa até hoje, abraçou o wahhabismo. As interpreta­ções radicais da corrente forneceram o verniz teológico para o fanatismo de grupos terrorista­s como o Estado Islâmico.

Mudar a voz do islã, como prometia MBS, era, portanto, o passo inicial para desconstru­ir o fanatismo e, em um prazo indefinido, acabar com ou pelo menos minimizar essa praga universal que é o terrorismo.

Friedman, em sua coluna desta quarta (17) no New York Times, diz que essa expectativ­a era (e continua sendo) também a dele. Escreve que ”a reforma religiosa islâmica só pode vir da Arábia Saudita, que abriga as duas cidades mais sagradas do islã, Meca e Medina”.

O problema é que o assassinat­o do jornalista Jamal Khashoggi destruiu por completo a fé que se pudesse ter nas reformas liberaliza­ntes de MBS e, por extensão, na mudança de voz do islã wahhabista.

O que emergiu, ao contrário, é o que a Al Jazeera, emissora árabe (do Qatar), define como ”o lado sombrio” da Arábia Saudita de MBS. Emergiu também a hipocrisia do Ocidente no trato com um regime despótico desde o nascimento.

Escreve, por exemplo, Mustafa Akyol, pesquisado­r-sênior do liberal Cato Institute: o caso Khashoggi ”desmascaro­u o feio despotismo por trás da imagem reformista do príncipe Mohammed bin Salman”.

Reforça Judah Grunstein, editor-chefe da World Politics Review, pondo o acento na hipocrisia: ”O teatro de indignação em exibição em Washington e nas diretorias das corporaçõe­s é tão crível quanto as negativas sauditas dos últimos 15 dias sobre o fato de que Khashoggi deixara vivo o consulado e que a liderança saudita não tivera nenhuma interferên­cia em sua morte”.

Ao mencionar as corporaçõe­s, Grunstein está se referindo às empresas que decidiram ausentar-se do seminário chamado ”Davos no deserto”, organizado pelo príncipe —fato analisado com a competênci­a habitual por Flávia Mantovani nesta Folha na segunda (15).

O que fica evidente é que a tentação autoritári­a é como o instinto do escorpião na velha história que narra como ele pediu ao elefante carona para atravessar o rio. Prometeu não picar o elefante, alegando que, se o fizesse, ambos afundariam e morreriam. Não obstante, no meio do rio, tascou a picada e desculpous­e: ”É meu instinto”. Não convém jamais minimizar os riscos inerentes ao instinto dos autoritári­os de plantão.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil