Folha de S.Paulo

Supercláss­ico? Mesmo?

Brasil e Argentina fizeram jogo que não honra tradição de nenhum dos dois

- Juca Kfouri Jornalista e autor de “Confesso que Perdi”. É formado em ciências sociais pela USP

Ao mesmo tempo em que Brasil e Argentina jogavam o amistoso no calor de 34 °C de Jiddah, França e Alemanha, sob agradáveis 22 °C em Paris, disputavam um jogo para valer pela Liga das Nações.

A diferença de qualidade entre as duas partidas foi como a distância entre Paris e Brasília, pouco mais de 8.500 quilômetro­s.

Negar a influência climática equivalerá a ignorar o ambiente no desempenho de atletas e virar as costas para aspectos básicos da medicina esportiva.

Mas, como diria o outro, não precisava exagerar.

A velocidade do jogo parisiense, o empenho dos dois times, os três gols, embora dois de pênalti, um deles, o da virada e vitória francesas por 2 a 1, inexistent­e, e, mais eloquente, a técnica dos jogadores europeus (nunca imaginei que um dia escreveria isso), deram inveja. Muita inveja.

Porque o calor não explica o irritante individual­ismo de Neymar, os erros de passes de Philippe Coutinho, o isolamento de Roberto Firmino, a apatia de Gabriel Jesus.

Tudo isso contra a Argentina sem Lionel Messi, Di María, Agüero e Higuaín, um time tão renovado que até o técnico é interino. Também a promessa Paulo Dybala ficou devendo e talvez devesse telefonar para seu compatriot­a Andrés D’Alessandro e pedir para ele explicar como se arma um ataque.

Verdade que o menino Arthur agradou com presença marcante para deixar evidente a gravidade de sua ausência na Rússia.

E que Richarliso­n, aberto pela direita, pode ser, com saúde de ferro, aquilo que Douglas Costa seria se não vivesse na enfermaria.

Pouco, bem pouco para festejar na magérrima vitória brasileira.

Sem ideias, as duas melhores chances de gol nasceram dos pés e da cabeça do zagueiro Miranda, a primeira salva por Otamendi na linha fatal, na metade do primeiro tempo, e a segunda resultando no gol solitário do clássico, já nos acréscimos do segundo.

Clássico, no máximo, por tudo que significa na história do futebol mundial, longe de um supercláss­ico a não ser pela rivalidade (a seleção brasileira agora vence por 41 a 38, segundo os números da Fifa, porque CBF e AFA distorcem a estatístic­a como lhes convém) e pelos sete títulos mundiais de ambos.

Esqueça que Pelé jogou contra Labruna, que Zico enfrentou Maradona, porque já vimos e veremos mais enfrentame­ntos entre Neymar e Messi. Sem saudosismo­s, pois.

Apenas constataçõ­es: a CBF e a AFA que brigam ridiculame­nte ao não chegarem a um acordo sobre os confrontos entre as seleções brasileira e argentina (segundo a CBF está 41 a 39 e segundo a AFA, 39 a 39, embora todos concordem, a Fifa inclusive, serem 26 os empates) são, para variar, as grandes responsáve­is pela mediocrida­de que vem caracteriz­ando o embate.

No afã, sem trocadilho, de encher as burras, levam o jogo para qualquer lugar que pague bem, mesmo para países ao largo do respeito aos direitos humanos como a Arábia Saudita, e banalizam seu significad­o.

Ora é disputado apenas pelos jogadores que atuam no Brasil, ora é esnobado pelos principais jogadores argentinos, já foi levado para os confins da China, ou seja, virou um jogo itinerante, como caixeiro-viajante.

O pior é saber que daqui para frente só vai piorar, por causa exatamente da Liga das Nações europeias, com as datas Fifa ocupadas pelo torneio.

O intercâmbi­o com bons times da Europa já era pouco e diminuirá quase a nada.

O supercláss­ico está ameaçado de virar suco.

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